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Autodeterminação de género: “Não é uma lei sobre casas de banho nas escolas. É uma lei sobre direitos humanos”, dizem os seus defensores

Autodeterminação de género: “Não é uma lei sobre casas de banho nas escolas. É uma lei sobre direitos humanos”, dizem os seus defensores
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As leis que permitem que as crianças e jovens possam escolher o nome com que se identificam, ou os balneários e casas de banho mais adequados à sua identidade de género, vão ser novamente discutidas no parlamento. Fomos ouvir quem a defende

Falta pouco para que seja discutida e aprovada na Assembleia da República a lei da autodeterminação e identidade de género nas escolas que defende, protege e permitirá que as crianças e jovens trans - ou em questionamento de género - no recinto escolar, possam escolher o nome por que preferem ser tratadas e optar por lugares e espaços onde se sentem mais seguras e adequados à identidade de género com que se identificam, como a escolha dos balneários e casas de banho.

Apesar do anterior veto do Tribunal Constitucional, e depois da alteração pedida, prevê-se que esta lei seja finalmente aprovada até o final deste ano. “O Tribunal Constitucional não pôs em causa a bondade destas medidas, apenas exigiu que constassem de lei da AR. É isso e apenas isso.”

A deputada do PS Isabel Moreira, que é uma das primeiras subscritoras da proposta de lei do PS, deixa claro que ela “não é” sobre casas de banho, e que essa afirmação é “falsa” e “maldosa”.

Mas é, sim, uma lei que permite que jovens e crianças trans escolher como se querem identificar e vestir, e quais os espaços onde se sentem em segurança, como ferramenta contra o bullying e violência. “Este projeto é sobre pessoas de carne e osso que precisam de adequada proteção legislativa para o “bom” exercício dos seus direitos fundamentais. Estamos a cumprir uma lei, de 2018, com a criação de um regime que garante o exercício do direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, bem como das características sexuais em ambiente escolar.”

Moreira quer deixar claro que o que esta lei prevê é que “as escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade”.

Por outras palavras, se um jovem ou uma jovem não se sente confortável na casa de banho X o Y deve ser assegurado que há, para esse ou essa jovem, “uma forma da sua intimidade ser respeitada, bem como a sua identidade”, não forçando essa aluna ou aluno a estar em ambientes em que se sinta agredida ou agredido.

Também esta semana o BE deu entrada no Parlamento o projeto de lei para reforçar a garantia de exercício do direito à autodeterminação da identidade de género, da expressão de género e do direito à proteção das características sexuais no âmbito escolar. De acordo, com Joana Mortágua, que defenderá o projeto do BE, o que esta lei faz é desdobrar a proteção e o combate à discriminação destas identidades de género em contexto escolar. “É necessário respeitar a autodeterminação de género numa fase fundamental do desenvolvimento das pessoas, que é a fase escolar. Até porque a violação dos seus direitos pode ter repercussões para o resto das suas vidas.”

Manuela Ferreira, da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual (AMPLOS), usa os mesmos argumentos de Moreira e Mortágua: “Isto não é uma lei das casas de banho, mas uma lei de direitos humanos. O que está aqui em causa é o reconhecimento das pessoas naquilo que elas são. Estamos a falar de jovens ou crianças que dizem que não se identificam com o género que lhe foi atribuído à nascença. E a primeira coisa importante é serem identificados com o nome com que se reconhecem. A isto chama-se a validação das pessoas. Se por acaso uma criança chegar e disser a um professor ou auxiliar de escola que não é Rita, como diz ainda no documento de identificação, mas João, o docente ou auxiliar tem que perceber que aquilo é uma vontade explícita da criança e tem que a respeitar.”

Manuela refuta a banalização deste tema e o lugar-comum “desinformado” que considera que os miúdos estão sempre a mudar de vontades. “Não é assim. Alguém que em vez de Manuel passa a identificar-se Maria tem de enfrentar toda uma série de questões emocionais, físicas, o olhar discriminatório dos outros, que uma pessoa que não seja realmente trans não aguenta e não quererá passar por isso. Porque esse caminho é difícil. Ninguém o faz de ânimo leve.”

Da mesma forma, a presidente da Ilga, Ana Aresta, esclarece que esta lei só vem tratar de forma adequada e respeitosa as realidades identitárias de tantas alunas e alunos em Portugal. “Esta lei só existe porque existe uma necessidade real nas escolas, de garantir a proteção e segurança destas crianças. E a necessidade de se criar espaços seguros para que possam viver plenamente no contexto educativo. A lei não vai criar crianças em questionamento de género ou identitário, nem vai criar novos jovens trans. Ela vai simplesmente validar as suas existências que até agora têm sido completa e violentamente colocadas de parte.”

Ana Aresta esclarece que estas crianças e jovens trans, ou em questionamento, muitas vezes no espaço escolar vivem em completo silêncio, à mercê da disponibilidade e da capacidade de diálogo do corpo docente e não docente. “Estão, portando, desprotegidas. Até porque nem todo o corpo docente está preparado para lidar com estes casos e fazer a devida articulação com os pais. A validação das identidades destes jovens faz parte desse processo e da educação. A escola tem esse papel na sociedade.” A dirigente ainda assinala que o que esta lei vai permitir é criar contextos em que docentes e não docente possam obter formação para se sentirem capacitados a dialogar sobre diversidade e a dialogar com estas crianças e jovens e as suas respetivas famílias.

Sobre este tema foi escrito um manifesto europeu de pais e mães de jovens trans que alertam para que nos últimos anos, tem-se verificado "uma mudança de paradigma" na abordagem dos cuidados dispensados a jovens trans* (incluindo cuidados de saúde e práticas educativas parentais), que partiram de um modelo reparador e patologizado, rumo a um padrão afirmativo desses mesmos cuidados. “Quando apoiados pelas suas famílias e pessoas cuidadoras, as crianças e adolescentes trans revelam melhores competências sociais e mais elevados padrões de saúde.”

Quanto aos receios que vaticinam perturbações, confusões, perigos que esta lei vem trazer, ou considerações mais anedóticas, Isabel Moreira não tem dúvidas das reais intenções. “A retórica do medo tem sido muito utilizada pela extrema-direita na América e na Europa. Fazem caricaturas, larachas, piadas contra estas crianças e jovens trans, é uma técnica antiga . Esta lei tem de ser interpretada com conhecimento e boa fé. O que está em causa é apenas o respeito pela identidade destas pessoas jovens nas escolas, que estão em transição hormonal, social. ”

A deputada recorda que esta lei já esteve em vigor, e que quando foi redigida em 2018, recebeu à porta fechada, na AR, jovem trans e as suas mães. “Só quem não tem coração não percebe a importância de defender estes jovens trans e suas identidades nas escolas. Ouvi-los falar do que é querer apenas ser feliz e não os deixarem ser quem sabem ser, não os deixarem, com todas as cautelas que os oradores do ódio sabem existirem, vestirem-se como querem, usarem o nome social que os faz sentir inteiros, sentir segurança na escola e no mundo quanto aos seus corpos. Ouvimos da dor, dos meses trancados em casa, da vontade de morrer. Os jovens e as crianças trans precisam de segurança, de liberdade e de privacidade. Cabe-nos respeitar a ciência e acolher na lei o que for necessário para proteger estas crianças e jovens.”

Este tema foi abordado por Laurinda Alves, atual vereadora dos Direitos Humanos e Sociais, Cidadania e Saúde na Câmara Municipal de Lisboa liderada por Carlos Moedas, que chegou a defender que a lei escolar permite que identidade de género duma criança seja verificada “baixando-lhe as calças”.

Isabel Moreira deixa claro o que pensa sobre estas declarações. “Penso que os jovens trans e as jovens trans desistiram de ouvir de Laurinda Alves um pedido de desculpas por uma declaração tão intencionalmente ignorante, maldosa, geradora de ódio e digna de um Bolsonaro, especialista em espalhar falsa informação sobre a comunidade trans no Brasil, uma das que mais morre à conta da transfobia.”

Também em 2019, um grupo de 85 deputados e deputadas do PSD e CDS-PP fez chegar ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização da norma. O dito requerimento foi elaborado por Miguel Morgado, Nilza de Sena e Bruno Vitorino. O mesmo que considerou em março de 2019 que “a sensibilização sobre diferentes orientações sexuais é uma porcaria”, como recordou o dirigente da Ilga Pedro Carreira no site “esQrever”.

Isabel Moreira responde com preocupação e alerta para os riscos desse tipo de discursos de ódio normalizados por algumas figuras da política portuguesa. “Lembro-me bem que começou aí a adoção, por parte de uma direita radical infiltrada nos partidos de direita tradicionais, dos temas caros à extrema-direita americana, brasileira e europeia. Hoje, está visto o resultado. Ao ódio e à desinformação responde-se com verdade e com a afirmação permanente de direitos fundamentais. À exploração dos sentimentos de quem se sente esquecido pela cidade, responde-se com políticas de igualdade, nunca deixando ninguém para trás.”

A deputada do PS termina afirmando que a aprovação desta lei vem tarde, “no sentido em que um dia sem direitos garantidos é um dia adiado.” E deixou escrito na sua página de Facebook: “A vida concreta dos filhos e filhas dos nossos concidadãos deviam parar o ódio da escola Trump. É um ódio de escola velha, já atirado a etnias e é demasiado cobarde. São crianças e jovens.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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