Sociedade

"Não é um piquenique", "um desfile ou uma parada": o que é afinal a iniciativa sobre a erradicação da pobreza a gerar polémica em Lisboa?

Caminhada "Impossible Walkers" realizada no âmbito desta iniciativa na edição de 2018
Caminhada "Impossible Walkers" realizada no âmbito desta iniciativa na edição de 2018
Impossible - Passionate Happenings

Organização garante: iniciativa que acontece há 20 anos na capital é “para todos”, “totalmente inocente" e “apartidária”. Câmara de Lisboa lamenta “vergonhoso aproveitamento político". Perceba a polémica em quatro perguntas e respostas

“Esta é uma jornada por, com e a favor de quem está numa situação de carência a vários níveis, mas é também um momento totalmente aberto ao público que deseje juntar-se e estar ao lado dos seus participantes.” É assim que se apresenta, na sua página oficial a iniciativa “Na Rua - Jornada Internacional pela Erradicação da Pobreza”.

O evento está marcado para a próxima segunda-feira (17) em Lisboa, mas tem sido desde esta terça-feira motivo de polémica. Além de centenas de comentários indignados nas redes sociais, as atividades não deverão contar com a participação de “mais de metade das juntas de freguesia” como noticia a TSF nem com a presença do Presidente da República, como tinha sido publicitado pela organização.

Eis o que aconteceu em quatro perguntas e respostas:

“Marcha”, “desfile” ou “piquenique”? O que vai de facto acontecer no dia 17?

A iniciativa começou por ser noticiada pelo Jornal Público na tarde desta terça-feira. A publicação descreve o evento como uma marcha e piquenique, termos utilizados num email ao qual o Expresso teve acesso e que Laurinda Alves (vereadora com pelouro dos Direitos Humanos e Sociais na Câmara Municipal de Lisboa) enviou às juntas de freguesia da cidade para dar conhecimento da iniciativa.

Henrique Pinto, fundador e presidente da Impossible - Passionate Happenings (a associação que organiza o evento), discorda desta terminologia e explica o que está previsto acontecer.

De manhã, entre as 9h30 e as 12h45, o evento inicia-se com “uma atividade ao ar livre no fundo do Parque Eduardo VII, junto ao Marquês de Pombal, onde vamos ter atividades desportivas, lazer, convívio, dinâmicas de relaxamento, jogos tradicionais portugueses, rastreios de saúde e entrevistas de emprego”, esclarece.

“A manhã conclui-se com o almoço, que não é um piquenique. Não é a toalha de xadrez retirada de uma cesta de verga, com salpicão e garrafão de vinho para fazer um piquenique à boa maneira portuguesa. Não tem nada a ver com isso”, afirma indicando que a comida foi cedida por uma “grande empresa generosa". De acordo com o email da vereadora, as refeições serão distribuídas "aos grupos previamente inscritos, que receberão a senha de refeição no momento de chegada/acolhimento”.

Já de tarde, “por volta das 15h iniciamos uma caminhada com presença do Presidente da República no arranque. Esta caminhada não é um desfile ou uma parada. Não vamos pedir às pessoas para caminharem nas ruas para ver onde estão os coxos, os aleijados, as pessoas dependentes de substâncias ativas, os alcoolizados, os invisuais. É uma caminhada que tem no seu apoio o Instituto Português do Desporto e da Juventude, porque este tem um programa de desporto para todos e nós achámos que estas pessoas em situação de pobreza muitas vezes não têm como regular algum exercício físico."

A caminhada termina na Rua Augusta, junto ao Arco, onde está a Laje que deu origem a esta iniciativa. Aí será realizado um “momento de memória e compromisso em que vamos recordar aqueles que morreram vítimas de pobreza, miséria e indigência. Vamos recordar aqueles que ainda hoje passam dificuldades e comprometer-nos em como não vamos desistir de ajudar as pessoas que encontremos no nosso caminho com várias carências e a necessitar do nosso apoio”, conclui Henrique Pinto.

Para este encerramento estão também previstas intervenções institucionais, testemunhos e momentos musicais, nos quais serão interpretadas canções que lembram tanto a guerra na Ucrânia como o tema “Na Rua” ("canção composta e escrita a pensar nesta efeméride" sobre a “dura realidade" de estar em situação de sem abrigo).

Contactado pelo Expresso, o gabinete do Presidente da República indicou ao final da tarde desta quarta-feira que Marcelo Rebelo de Sousa não irá estar presente na iniciativa. A sua participação tinha sido indicada pelo fundador da organização durante a entrevista ao Expresso pela hora de almoço, tendo Henrique Pinto dito que a presença de Marcelo tinha sido confirmada pelo gabinete da Presidência.

Esta é a primeira edição desta iniciativa?

Não, esta é a 20.ª edição. “Este evento nasce em 2002", explica Henrique Pinto.

“Em 2001, encontrei mesmo ao fundo da Rua Augusta, junto ao Arco, uma Laje ligado ao movimento que nasce em Paris de uma manifestação que juntou na altura - a 17 de outubro de 1987 - mais de 100 mil pessoas que marcharam até à Praça de Trocadero, completamente descontentes pela miséria, indigência e pobreza que se vivia na altura.”

Participantes da iniciativa em 2018, junto à Laje da Rua Augusta que é réplica da existente em Paris
Helena Tomas

A laje existente na calçada desta avenida lisboeta é uma réplica da laje existente na Praça de Trocadero e foi instalada a 17 de outubro de 1994, quando Jorge Sampaio era presidente da CML.

“Eu achei que aquela pedra era uma pedra esquecida e que tendo sido colocada ali não era uma pedra para adornar a calçada portuguesa", continua Henrique Pinto. “Achei que era hora de ressuscitar aquela laje, naquele preciso dia, 17 de outubro - porque a ONU, mais tarde, em 1992 aproveitou o movimento de Paris para criar a Jornada Internacional pela Erradicação da Pobreza.”

Assim, desde 2002, o fundador da Impossible - Passionate Happenings (que só viria a ser fundada em 2015) organiza anualmente uma iniciativa neste dia. A caminhada nem sempre existiu, mas a passagem pela Laje sempre fez parte do programa.

Fórum realizado na edição de 2019
Impossible - Passionate Happenings

Para quem é afinal o evento?

Na origem da polémica esteve também o email de Laurinda Alves, enviado a 29 de setembro, para as juntas de freguesia de Lisboa no qual a vereadora afirma que “a iniciativa é direcionada para pessoas em situação de vulnerabilidade social” e solicita que divulguem a iniciativa junto destas pessoas que sejam “acompanhadas nos projetos dinamizados” por cada junta.

Esta formulação motivou críticas por parte das juntas. "Este convite, tal como vem descrito no e-mail, expõe pessoas que devem ser protegidas por nós. Acima de tudo isto é um atentado à dignidade das pessoas", critica Carla Madeira (presidente da junta de freguesia da Misericórdia) em entrevista à TSF. Outros autarcas fazem declarações no mesmo sentido, defendendo que são necessárias "medidas consequentes" num combate que se "faz todos os dias”.

Henrique Pinto tece severas críticas a quem falou contra a iniciativa. “Alguém vem a público denegrir e distorcer tudo aquilo que é de verdade sobre isto não merece estar onde está.” E acrescenta que “o que veio a público é um total absurdo" e que esta é “uma ação totalmente inocente, apartidária”.

“O que eu vejo aqui é política à portuguesa do pior. Neste ano, à imagem de todos os outros 19 anos, estamos a fazer precisamente a mesma coisa. O que me parece é que há aqui um aproveitamento de todo o tipo e uma leitura que é certamente política .”

E argumenta: “Esta é uma iniciativa sem classes que ao longo dos anos chegou às juntas de freguesia sempre com o propósito de os pobres ou aqueles que se sentem lesados venham. Mas é um evento aberto à solidariedade da sociedade civil. Nós nunca fechámos, e seria estúpido fazê-lo, (ou quisemos) que isto fosse uma espécie de festival de freaks. Ninguém vai ter escrito na sua lapela, na sua camisola, nas suas calças ‘eu sou pobre’ ou ‘eu não sou’. Não é o Joaquim alcoolizado ou o Joaquim coxo. Não é o António disto ou daquilo. As pessoas que vierem vão ser tratadas de igual modo. O que a vereadora quis dizer foi que as juntas de freguesia estão convidadas a participar e a trazer livremente quem quiser participar e se sinta no dever de estar. Mas nunca foi um evento fechado. Estamos aqui a fazer um convite a todos."

“Lamento profundamente a atitude e o vergonhoso aproveitamento político sobre um tema que a todos nos devia unir”, afirma Laurinda Alves ao Expresso.

É a primeira vez que a Câmara Municipal de Lisboa se associa a esta iniciativa?

Também não. Nas últimas três edições pelo menos, o logótipo da CML constou dos materiais de promoção da iniciativa. Em 2018, por exemplo, o vereador do BE Manuel Grilo, que na altura detinha a pasta dos Direitos Humanos na CML, participou na iniciativa. Em 2019, a sua assessora e coordenadora do NPISA de Lisboa, Teresa Bispo, constou de dois painéis de discussão incluídos no programa dessa edição.

Manuel Grilo, na altura vereador como pelouro dos Direitos Humanos, na edição de 2018 desta iniciativa
Impossible - Passionate Happenings

Segundo Henrique Pinto, “desde o início, e ao longo dos anos, que os poderes públicos e toda a rede social desta cidade estiveram envolvidos ou tiveram conhecimento (da iniciativa)”.

“Em 20 anos já passei por diversos presidentes de câmara, diversos vereadores, diversos equipas técnicas e por tanta gente. (Em duas décadas) realizámos os mais variados programas que em cada nos pareciam fazer sentido. Este ano o programa que nos parecia fazer sentido é este. Nós pensámos em convidar pessoas em situação de pobreza, exclusão social e sem abrigo. E o público em geral, é uma iniciativa totalmente aberta até porque o lema do programa deste ano é “não corras comigo mas ao meu lado.”

Além da CML são parceiros da iniciativa o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA), a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ).

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: calmeida@expresso.impresa.pt

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