Incenso pelos ares na despedida de Compostela

No derradeiro dia do Off-Road Bridgestone First Stop Caminho de Santiago 2022, o dia do regresso a casa, o encontro com um portentoso incensário voador na catedral galega
No derradeiro dia do Off-Road Bridgestone First Stop Caminho de Santiago 2022, o dia do regresso a casa, o encontro com um portentoso incensário voador na catedral galega
Na celebração da missa é habitual vermos um sacerdote ou um acólito pegar num incensário, balançá-lo e espalhar à volta um perfume celestial. Porém uma missa na catedral de Santiago de Compostela, ainda por cima em Ano Santo, não é uma missa qualquer, seja pela quantidade de fiéis e peregrinos presentes, seja pelo significado da data. É então que entra em cena a tradição do Bota Fumeiro, testemunhada terça-feira, 4 de Outubro, por este vosso escriba, por ocasião da despedida dos participantes no passeio 4x4 a Compostela promovido pelo Clube Escape Livre e do qual vos falei em anteriores crónicas.
Ditas as últimas palavras, ou seja “ide em paz e que Deus vos acompanhe”, um grupo de acólitos de togas vermelhas e físico imponente – os Tiraboleros – toma posição frente ao altar-mor. Um incensário em prata pouco menor que uma bilha de gás, até então suspenso do tecto da nave central, é descido, carregado e aceso. Um hábil empurrão quebra a imobilidade do objecto e este começa a balançar de um lado para o outro, como um pêndulo gigante, ganhando cada vez mais velocidade e alcance, à medida que a equipa puxa e depois larga a corda. É um voo triunfal a todo comprimento do transepto, quase roçando o tecto em cada elongação e, pelo caminho, largando nuvens de incenso, enquanto o troar de um órgão de tubos dá ao evento um triunfal fundo sonoro.
Um devoto verá porventura reforçada a sua fé, enquanto um espírito cartesiano rebuscará na memória as fórmulas das leis do pêndulo, nomeadamente as que relacionam o período com o comprimento do cabo e a aceleração da gravidade. A cerimónia dura pouco mas quem a tenha visto uma vez nunca mais a esquecerá. Donde vem esta tradição?
De um problema prático: ao fim de meses a andar por montes e vales os peregrinos medievais não exalariam propriamente o mais agradável dos cheiros, mesmo pelos não muito exigentes padrões da época. O Bota Fumeiro era assim uma forma expedita mas espectacular de tornar menos irrespirável a atmosfera no interior da catedral. Nos nossos tempos a tradição do Bota Fumeiro perdurou, reservada para ocasiões especiais.
À saída, feita pela Porta Santa (que abre unicamente nos Anos Santos/Jacobeus), pude constatar a quilométrica fila de gente que se tinha formado no exterior à espera do fim da missa. Junto à fachada principal da catedral, na Praça de Obradoiro, acotovelavam-se chusmas de turistas com os respectivos guias, atrapalhando-se um aos outros. Mais feira que peregrinação. Mais sobrecarga de gente que visita tranquila a um lugar único. Depois de Veneza, de Barcelona ou de Lisboa, parece ter chegado a vez de Compostela ser vítima do seu sucesso.
Até a velha tradição do Paris-Dakar se perdeu. Expliquemo-nos: num dos extremos da Rua do Franco, perto da catedral, há um bar chamado Dakar, situando-se no outro extremo um concorrente chamado Paris. Estudantes, visitantes e outros boémios tinham por hábito fazer o “Paris-Dakar” ou seja ir de um tasco ao outro parando pelo caminho em todas as capelinhas intermédias para beber uma rodada. “Da forma que o turismo inflacionou os preços, um mero estudante gastaria a bolsa numa noite se se abalançasse a esta aventura”, afiançava o guia que nos conduziu num périplo à volta da catedral.
Lembro-me, no Verão de 1989, de ter estado aqui em serviço de reportagem por ocasião da visita de João Paulo II e das IV Jornadas Mundiais da Juventude. E de, depois das multidões, dos cordões policiais e das câmaras de televisão se terem retirado, ter assistido ao lento regresso da zona histórica à sua atmosfera habitual. Na Rua da Raiña, quase deserta e mergulhada na escuridão, fiquei encostado a uma coluna ouvindo um músico amador tocar no acordeão o bolero “Ja non estas mas a mi lado corazon”. Era a Compostela de que eu gostava e que talvez não volte nunca mais.
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