Castanhas e milagres a caminho de Compostela

Primeira de três etapas de uma peregrinação motorizada a Santiago de Compostela começou sábado, dia 1 de Outubro, em Trancoso, atravessou as Terras do Demo e terminou em Mondim de Basto
Primeira de três etapas de uma peregrinação motorizada a Santiago de Compostela começou sábado, dia 1 de Outubro, em Trancoso, atravessou as Terras do Demo e terminou em Mondim de Basto
Há 33 anos, no final da Primavera de 1989, a primeira romaria motorizada portuguesa a Santiago de Compostela (promovida à época pelo Clube Todo-o-Terreno) começava em Trancoso. Agora, uma iniciativa semelhante voltou hoje, dia 1 de Outubro, a partir do mesmo local, promovida pelo Clube Escape Livre. Num caso e noutro, a junção de uma rota cultural europeia – o Caminho de Santiago – com a prática do todo-o-terreno e a descoberta dos caminhos ancestrais de um país pequeno mas rico em história, paisagem e património.
Trancoso, terra do visionário Bandarra e do destemido cavaleiro João Tição, cenário de uma batalha importante com os castelhanos durante a crise de 1383/85, foi o aperitivo para um extenso passeio que só terminou ao por do sol em Ribeira de Pena. Tal como há 33 anos, o primeiro ponto de paragem desta primeira jornada a caminho de Compostela foi a vila de Sernancelhe, famosa pela sua igreja matriz românica e a que se costuma chamar a capital portuguesa da castanha. Um centro de interpretação construído pelo município local explora justamente esta vertente com derivativos inesperados: queijadas de castanha, licor de castanha…
Onde os pecadores não passam
Andado mais um par de quilómetros e ainda dentro deste concelho beirão tão ligado a Aquilino Ribeiro, um visita ao santuário de Nossa Senhora da Lapa onde, num antigo colégio dos jesuítas, o autor de “Terras do Demo” chegou a estudar. O santuário, cenário de uma concorrida romaria a 15 de Agosto, tem várias surpresas, todas tendo a ver com a gruta (lapa) em torno da qual foi construído, celebrando um milagre atribuído a Nossa Senhora. Passando sob uma laje granítica e limitado por estreitas paredes rochosas, uma espécie de deambulatório passa sob uma das capelas. Tão estreito e sinuoso é, que alimentou a lenda de que só os isentos de pecado por ali se conseguem esgueirar, ostracizando por consequência os gordos (pecado da gula), as grávidas devido a amores ilegítimos (pecado da luxúria) ou quem sabe se os maridos enganados por aquelas…
Ainda na cripta do santuário costumava estar exposto um dos mais extraordinários ex-votos das igrejas lusas: a representação de um avantajado crocodilo, suspenso do tecto, evocando uma graça concedida pela padroeira a um navegante de quinhentos atacado por um sáurio na Índia. Entenderam os gestores religiosos do local que, em vez de restaurar o bicho, era melhor construir uma vitrina iluminada junto ao chão e por lá uma réplica de plástico. Algo que desiludiu muitos dos visitantes habituais e a própria Câmara de Sernancelhe.
Há casos em que os serviços do Estado deixam degradar património religioso e são os paroquiamos a abrir os cordões à bolsa para salvar interiores de igrejas, pinturas, etc. Mas também há casos como este em que os critérios de restauro dos paroquianos deixam a desejar. Tal como os do Senhor, os desígnios do património são, pelos vistos, insondáveis.
São João de Tarouca e Ucanha
Mas que o turismo, religioso ou não, pode ser um importante motor de desenvolvimento local ficou patente. Restaurantes, lojas de artesanato e comércio diversos, incluindo hotelaria local, passaram a animar a Senhora da Lapa, o mesmo sucedendo a dois outros pontos desta primeira jornada do passeio do Clube Escape Livre: a igreja e os restos do mosteiro de São João de Tarouca, uma das grandes casas da Ordem de Cister em Portugal e a raridade que constitui a ponte-fortaleza da Ucanha, terra natal do antropólogo Leite de Vasconcelos.
A igreja de São João de Tarouca é uma jóia do património português, como o demonstram a riqueza do altar-mor de talha dourada, a ricamente decorada sacristia e o imponente túmulo em pedra de D. Pedro Afonso, filho natural de D. Dinis. Já a ponte da Ucanha testemunha uma espécie de pórtico de portagem da idade média, graças ao qual os monges do couto de Salzedas impunham, quais concessionários das modernas auto-estradas, o pagamento e um estipendio pela travessia do rio Varosa.
Os tempos não mudaram assim tanto e tal como estes a paisagem. Neste primeiro dia de passeio houve ainda oportunidade para contemplar as paisagens grandiosas da serra das Meadas junto a Lamego (obrigado parques eólicos e respectivos estradões de acesso!), bem como o que resta dos soutos e carvalhais das serras do Alvão e do Marão.
Domingo, dia 2 de Outubro, o passeio explorará um ramo do Caminho Português de Santiago a caminho da abadia de São Bento da Porta Aberta em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês e do mosteiro de Tibães em Braga, terminando a jornada em Viana do Castelo.
Para segunda-feira dia 3, fica reservada a parte final do passeio com transposição do rio Minho e entrada em terras galegas a caminho de Compostela.
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