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O escravo da Serra Leoa salvo no porto de Aveiro

O escravo da Serra Leoa salvo no porto de Aveiro
José Carlos Carvalho

Uma empresa pesqueira portuguesa contratou na Gâmbia um jovem de 20 anos. Nunca lhe pagou salário. À chegada a Aveiro deixou-o no navio, sem dinheiro, documentos ou comida. O SEF resgatou-o na semana passada e o processo foi entregue ao Ministério Público

Karim* é jogador de futebol. Fazia da bola profissão quando um armador português o aliciou, na Gâmbia, para alguns meses de trabalho em alto-mar, a bordo de um navio-pesqueiro. Teria contrato assinado, um salário de cerca de 700 euros, alimentação incluída e a legalização assegurada quando atracassem no Porto de Aveiro. Aceitou. Aos vinte anos já conhecia bem as lides da pesca, até tinha cédula marítima para o comprovar, e a ida para Portugal era a oportunidade que esperava para conseguir mudar a sua vida.

A viagem por dias melhores começou na Serra Leoa, onde nasceu, e passou pela Guiné-Conacri e Senegal, sempre ascendente ao longo da costa africana. O caminho por terra continuaria agora por mar. Não percebeu o que estava escrito no documento em português que assinou - disseram-lhe que era o contrato -, mas acreditou que eram as mesmas garantias dadas de viva voz. Não ficou com cópia. Nem ele nem os outros dois pescadores, compatriotas, angariados na mesma altura.

Ao longo dos mais de três meses em que esteve a bordo do navio nunca foi pago. Passava os dias, com mais horas de trabalho do que descanso, principalmente na cozinha, entre outros biscates. Qualquer exigência ou crítica era repelida com ameaças de violência física. Não podia rebelar-se, bater com a porta, fugir. Era só água à volta. E também não queria. Precisava de assegurar que lhe seriam pagos, ainda que tardiamente, os salários em falta. Em casa, a mãe esperava por esse dinheiro.

Quando em agosto, o navio atracou no porto de Aveiro, o armador manteve a mesma atitude. Limitou-se a oferecer aos três trabalhadores “uma quantia mínima” para que tentassem regressar ao país de origem. Não dava nem para metade da viagem. Os outros dois africanos fugiram, sendo desconhecido o seu paradeiro. Karim continuou a acreditar que seria remunerado e ficou. No barco vazio. O armador português exigiu-lhe trabalhos de manutenção e abandonou-o.

Foi a necessidade de sobrevivência que o fez por pé em terra. Ao longo do porto de Aveiro ia pedindo alimentos, água, dinheiro. Foi um mês de mendicidade forçada. Um dos trabalhadores da infraestrutura portuária deu-lhe mais do que comida. Denunciou o caso à Equipa Multidisciplinar Especializada do Norte para Assistência a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos, da Associação para o Planeamento da Família (APF) que, por sua vez, lançou o alerta ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Juntos resgataram-no no passado dia 8 de setembro.

Karim não tinha documentos originais consigo, só cópias. “Explicou-nos que terão sido roubados pelos colegas que fugiram. Mas atentas as circunstâncias humanitárias da situação, foi-lhe concedido um visto especial para que desse entrada legal em Portugal”, explicou ao Expresso fonte oficial do SEF, presente no local. Está atualmente no Centro de Acolhimento e Proteção para Vítimas de Tráfico de Seres Humanos do Sexo Masculino, com capacidade para 12 pessoas, que recebe principalmente trabalhadores explorados no setor agrícola.

Todos os indícios recolhidos estão agora nas mãos do Ministério Público, podendo a investigação ser entregue ao SEF ou à Polícia Judiciária. Se ficar provado que Karim foi vítima de tráfico para exploração laboral terá direito à autorização de residência (legalização) que tanto queria. Alcançou-a da forma mais dura.

Casos a aumentar

O último relatório do Observatório de Tráfico de Seres Humanos (OTSH), relativo a 2021, ainda não foi publicado - está para breve -, mas em março a ministra Francisca Van Dunem, que tinha então a pasta da Administração Interna, revelou que os casos estão a subir. “Em 2021, foram rececionadas 318 sinalizações de vítimas de tráfico, das quais 308 em Portugal. Comparando com 2020, o número aumentou 89 registos, o que significa mais de 39%”, avançou durante a apresentação do projeto “Melhorar os sistemas de prevenção, assistência, proteção e (re)integração para vítimas de exploração sexual”.

Segundo a ministra, Portugal mantêm-se, à semelhança de anos anteriores, como país essencialmente de destino para vítimas de tráfico de seres humanos, existindo “poucos casos” em que é o país de origem. , de países não membros da União Europeia. A exploração laboral a bordo de barcos de pesca é uma realidade internacional, mas sem expressão em Portugal.

*nome fictício para proteção da vítima

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RMoleiro@expresso.impresa.pt

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