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Reportagem. De bater o dente: porque nos entra o frio em casa?

Reportagem. De bater o dente: porque nos entra o frio em casa?

Esta semana as temperaturas baixaram drasticamente e espera-se um aumento do consumo de eletricidade para o aquecimento das casas. Quando Portugal atinge números preocupantes de pobreza energética, como se combate este problema? A evolução passa por, morada a morada, corrigir os erros do passado

Quando cai a noite sob o quarto fechado de João e Albertina e o silêncio lhes captura o pequeno T2, não há ponta de vento que não se sinta nas cortinas. Tremem mesmo com a janela fechada. A essa hora, no quarto trancado e debaixo dos lençóis, o casal sente o frio a entrar.

É um hóspede assíduo. Nunca convidado a estar ali, insiste em tornar-se também ele habitante. Muitas vezes é difícil de evitar, de tal forma que vai criando a sensação de também lá viver, paredes meias com os inquilinos. Não paga renda e ainda é hábil a aumentá-la, em muitas das casas portuguesas.

De tantos anos acostumados ao frio, João e Albertina tornaram-se hábeis em evitá-lo. “Vamos para a cama cedo”, conta ela, convicta, sob o olhar atento do marido, decidido a dar mais alguns detalhes. “Às nove da noite já lá estamos. Chegamos a meio da madrugada e ficamos saturados de estar deitados”.

De manhã, cedo, ao levantar, a humidade escorre pelas paredes. Mal abre a janela, Albertina agarra num pano para limpar a água. À porta, João certifica-se de que um “chouriço” do lado de dentro abate o vento frio que vem do corredor. Na casa onde os dois reformados passam grande parte do tempo, o sol só bate numa das frentes, a da sala e da cozinha, completada com uma marquise generosa onde tantas vezes decidem almoçar, por ser mais quente. Os quartos localizam-se na sombra e quase só servem para dormir.

João e Albertina têm truques para suportar o frio. Deitam-se sempre às nove da noite. FOTO FERNANDO VELUDO/N FACTOS

No bairro da Emboladoura, em Guimarães, quase todas as mais de 250 casas são assim. As construções de há 40 anos em terrenos cedidos pela empresa têxtil Coelima, com o propósito de irem para ali viver trabalhadores, foram tendo gerência estatal pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). Mais de 30 estão vazias. Cerca de meia centena foram vendidas. Em visita ao bairro, nota-se a instalação de ares condicionados em alguns dos apartamentos particulares. “Mas quase ninguém os liga. Para quê? O calor não fica lá dentro. O frio entra por tudo quanto é lado”. Daí que João e Albertina tenham dado o único aquecedor da casa à filha mais nova, a estudar em Bragança. “Tem de ser porque lá faz muito mais frio do que aqui. Eu e ele, sozinhos, vamos para a cama cedo”, reforça a mulher.

Se mantivessem o aquecedor em casa, dependendo do tempo em que o tivessem ligado, a fatura da eletricidade iria encarecer algumas dezenas de euros para este casal. São quase 39 cêntimos por hora a mais na fatura da luz. Pelos dados mais recentes do Eurostat, percebe-se que Portugal era o oitavo país com a fatura de eletricidade mais cara da Europa.

João Pedro Gouveia, doutorado em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável – Sistemas Sustentáveis de Energia, recorda que “às vezes ouvimos um ministro ou secretário de Estado dizer que os preços da energia de Portugal até estão abaixo da média europeia”. E isso é verdade. No entanto, “quando olhamos para a paridade do poder de compra, isto é, a disponibilidade das famílias para pagarem, aí o país sobe na vulnerabilidade porque o rendimento é muito baixo comparado com a média europeia”, explica. E de facto, 18,9% dos portugueses não conseguem aquecer a própria casa no inverno – um valor que choca com a média da UE, de 8%.

Aqui ao lado, em Espanha, o ordenado mínimo já é superior a mil euros e, embora o custo do quilowatt de eletricidade seja cerca de 40 cêntimos mais caro, a botija de gás custa metade do preço. No último ano, de acordo com dados da Deco Proteste, o preço do gás subiu de forma generalizada em Portugal.

Por exemplo, o valor da botija de 13kg de butano, a mais comum, aumentou 1,62 euros, para os 27,89 euros, o que poderá complicar as contas a quem se aquece com aquecedores a gás. A Fixando, plataforma de de serviços, estima ao Expresso um crescimento de 81% na procura por serviços de aquecimento para casa com as descidas de temperaturas (5ºC de mínima em Lisboa e Porto esta semana).

O triângulo da vulnerabilidade

Foi quando a pandemia o empurrou para trabalhar em casa, que Rui Fernandes se apercebeu pela primeira vez de que o apartamento alugado com a namorada, em Braga, tem “problemas a nível energético”. Antes disso, nunca achou a casa fria. Mas o pequeno T1 construído há cerca de 15 anos, com “muitas janelas” e falta de exposição solar, trocou-lhe as voltas nas tarefas profissionais. Até comprar um aquecedor, “passava frio”. “Ajuda, mas tem a outra parte – o custo”. Esse peso extra resultou no aumento de, pelo menos, uma dezena de euros na fatura da eletricidade, “que não é muito, mas para valores de 40 euros, como pagava, ainda é algum”, reconhece. Acresce ao problema o facto de, com esse valor, só conseguir ter uma divisão quente de cada vez.

Rui Fernandes comprou um aquecedor. Teve de o fazer ou o ritmo de trabalho era afetado pelo enregelamento dos dedos. Mas sente o peso da decisão na fatura da luz. FOTO RUI DUARTE SILVA

Segundo as contas do investigador de Energia e Clima da Universidade Nova de Lisboa, João Pedro Gouveia, 80% dos portugueses têm desconforto térmico em casa.

“E já não é preciso aquela ideia de ser pobre”, garante. O frio já entra pela casa da classe média. Mas como podemos explicar que num dos países europeus com temperaturas mais amenas no inverno se sinta tanto esta estação do ano? Enquanto na maioria dos países europeus o aquecimento se faz por redes de calor, em Portugal as opções mais próximas das pessoas, como os aquecedores a óleo, os ares condicionados e as lareiras, são, nas palavras do especialista, “altamente ineficientes, à conta desta ideia de que só temos duas ou três semanas de inverno a sério”. Contudo, a ineficiência e o preço do aquecimento é apenas um dos três vértices do problema. A pobreza dos cidadãos e as fracas construções das casas são os outros.

Calcanhar de aquiles português

O primeiro regulamento térmico dos edifícios só apareceu em 1990, mas houve um boom de construção antes disso em Portugal. Coincidente com o regresso de retornados da guerra, nos anos 80 houve a necessidade de construir muito, rápido e barato. As escolhas passaram por janelas simples e pouco ou nenhum isolamento. A arquiteta Aline Guerreiro lembra que não havia fiscalização. “Como se construía muito, depressa e de forma pouco fiscalizada, para além de pouparem nos materiais de construção, os empreiteiros não tinham nenhum cuidado em orientar bem os edifícios”, uma das grande vantagens para aquecer as casas de forma natural.

A melhor orientação é a sul, por ser a que mais horas de exposição solar tem, garante a também fundadora do Portal de Construção Sustentável. Com casas bem orientadas, as cidades seriam diferentes, as ruas mais geométricas e mais planeadas.

Meio século depois, Portugal tem cerca de 70% dos edifícios ineficientes. No entanto, apenas cerca de um terço das casas foram avaliadas, o que leva João Pedro Gouveia a acreditar que serão muitos mais os casos. “E é importante dizer que as casas onde moram há 50 ou mais anos pessoas idosas na zona rural são aquelas em que se encontram as piores situações”.

O lar centenário onde Ilda Rolo reside com o marido, dois filhos e uma idosa a seu cargo, é um dos inúmeros exemplos. É uma casa antiga, de 1881, em pedra, restaurada há 35 anos, mas sem isolamento e com janelas de madeira, localizada na aldeia de Montaria, em Viana do Castelo. Foi ali que Ilda nasceu. Foi por ali que a vida a levou a permanecer, mesmo que cedo se tivesse de habituar ao frio a entrar-lhe portas adentro. Até há bem pouco tempo, a fonte de calor era um conjunto de aquecedores a óleo, mas “no inverno ao fim do mês era uma loucura”, conta a mulher. “Por vezes ligava-o só um bocadinho para tomar banho e depois ia para a cama cedo”.

Ter a madrinha idosa a seu cuidado levou à necessidade de manter o quarto quente permanentemente e fez aumentar muito as despesas, para mais de 120 euros. E comprar janelas de vidro duplo é uma ideia adiada. “Cada uma a mais de mil euros, não dá para a minha carteira”, lamenta a desempregada.

Na casa onde Ilda Rolo e o marido vivem, em Viana do Castelo, não há isolamento nem aquecedores. Tê-los seria “uma loucura ao final do mês”. FOTO RUI DUARTE SILVA

Morrer de frio

O nosso principal problema já não pode ser eliminado, apenas remendado. Quando a maior parte das pessoas já gasta dinheiro com o aquecimento em casa, “e as pessoas não têm dinheiro”, lembra Aline Guerreiro, a solução passa, segundo a arquiteta, não por construir novas casas, “porque já temos casas a mais”, mas sim começar a reabilitar “corrigindo os erros dos edifícios existentes”.

Em primeiro plano, as janelas, com vidros duplos e boa caixilharia. Depois, o isolamento, sobretudo através de materiais sustentáveis como a cortiça ou as lãs. “Quando é preciso climatizar a casa, fazê-lo através de painéis solares ou equipamentos eficientes em termos de energia, como os painéis fotovoltaicos. Mas a primeira medida tem de ser sempre isolar, isolar, isolar” avisa a arquiteta.

Portugal já alocou 300 milhões de euros para melhorar a eficiência energética nas casas. Desses, 45 milhões estão a ser geridos por dois programas de apoio – o ‘Edifícios + Sustentáveis’ e o ‘Vale Eficiência –, em que as famílias recebem apoios para investirem no isolamento da sua casa ou em materiais de aquecimento, como painéis fotovoltaicos ou ares condicionados.

Estes programas são um começo, mas João Pedro Gouveia denota neles duas falhas: deveriam comparticipar mais em matéria de isolamento, para irem à raiz do problema, do que em matéria de aquecimento. Por outro lado, só estão disponíveis para quem tem casa própria, quando “as pessoas mais pobres não têm casa, alugam-na”.

Mas é, ainda assim, um começo para definir um rumo para um país onde todos os anos se morre de frio no inverno. Em janeiro de 2021, o médico Gustavo Tato Borges atribuía ao frio a responsabilidade por 24% do excesso de óbitos.

Só que falta ritmo a Portugal. E falta estratégia numa altura em que parece claro que a pobreza energética é também um problema de saúde pública.

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