Sociedade

O veleiro Arka Kinari, “um projeto artístico de ativismo” que a covid-19 deixou à deriva (com um português a bordo)

O veleiro Arka Kinari, “um projeto artístico de ativismo” que a covid-19 deixou à deriva (com um português a bordo)
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A intenção era a de iniciar no próximo mês uma digressão de dois anos na Indonésia de alerta para a crise ecológica, mas a pandemia do coronavírus trocou as voltas ao projeto. Com as fronteiras fechadas e sem uma solução no horizonte, a tripulação tenta racionar o combustível e os mantimentos e já pediu ajuda consular – sem sucesso. O chef de cozinha Pedro Beleza e a restante tripulação contaram ao Expresso as peripécias por que estão a passar

O veleiro Arka Kinari, “um projeto artístico de ativismo” que a covid-19 deixou à deriva (com um português a bordo)

Hélder Gomes

Jornalista

O veleiro Arka Kinari fez-se ao Mar do Norte em setembro do ano passado, usando a própria embarcação e a água como cenários para performances multimédia de alerta para a crise ecológica. O grande objetivo era o de iniciar em junho uma digressão de dois anos na Indonésia. Mas a pandemia do novo coronavírus foi declarada quando o veleiro estava em pleno Oceano Pacífico e as fronteiras indonésias foram encerradas. A bordo seguem seis pessoas, incluindo o chef de cozinha e ativista Pedro Beleza, que escreveu uma carta à Embaixada de Portugal em Jacarta.

“Quando saímos do México em direção às Ilhas Marshall, a covid-19 ainda não se tinha tornado a pandemia mundial que é hoje. Após cerca de 10 dias no mar, começámos a receber as primeiras notícias através do Garmin, um telefone por satélite que nos permite contactar com o mundo através de 160 carateres por mensagem”, conta ao Expresso. Foi aí que se deram conta das medidas de confinamento decretadas pelos governos, do cancelamento de eventos ou do fecho de escolas, entre outras medidas que iam sendo anunciadas.

O encerramento das fronteiras permitiu-lhes perceber que iriam tornar-se “um dano colateral na luta contra a pandemia”, algo que consideram incompreensível. “O nosso meio de locomoção não é propício à propagação de doenças como a covid-19 porque qualquer das deslocações implica um isolamento que, em caso de contágio assintomático, ultrapassaria o tempo que o vírus consegue sobreviver no corpo humano”, explica.

“Com o nosso apoio em terra conseguimos uma autorização especial para o barco ancorar em Hilo, no Havai, e vistos para os europeus a bordo. Esta solução permitiu-nos reabastecer o barco, recuperar emocional, física e psicologicamente da travessia e de toda a informação com que tínhamos sido bombardeados e planear o resto da viagem”, prossegue o português. Ao fim de um mês, tiveram de partir sem destino, com os vistos expirados e “a época de tufões a aproximar-se perigosamente”.

Em resposta à missiva enviada, a Embaixada de Portugal em Jacarta esclareceu que “atendendo à relativa imponderabilidade das trajetórias de evolução do vírus”, não lhes “é possível prever agora o que se venha a verificar daqui a seis semanas, altura em que [o veleiro] estima chegar à Indonésia”. “Neste momento, permanece proibida a entrada a estrangeiros não residentes e o desembarque de tripulantes não residentes de embarcações que aqui aportem – a este respeito, de resto, em moldes semelhantes ao que se verifica em Portugal”, acrescentou a embaixada.

Pedro Beleza, o chef de cozinha do Arka Kinari
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“Orientar um navio de 70 toneladas com um iPhone”

Grey Filastine, mentor do projeto, diz que se encontram “há vários dias no mar, sem qualquer porto aberto no horizonte”. No último fim de semana, passaram perto do Atol Johnston, um território americano que já foi usado para testes de armas nucleares, que tem depósitos de armas químicas e, por isso, está vedado a visitas. “Tentámos contactá-los via rádio para perguntar se podíamos ancorar, mas não tivemos resposta e não nos arriscámos a violar a zona de segurança de três milhas [cerca de cinco quilómetros] para nos aproximarmos. Nunca pensei acabar a mendigar refúgio num depósito de resíduos de armas de destruição maciça”, lamenta Filastine.

“Continuamos a seguir os ventos alísios [usados há séculos para atravessar os oceanos]. As próximas ilhas ficam a pelo menos duas semanas, mas pertencem às Ilhas Marshall, que estão oficialmente fechadas”, diz. O Arka Kinari definiu rotas para alguns atóis abandonados na esperança de que “a Indonésia reabra as suas fronteiras ou abra uma exceção”. “O chartplotter [dispositivo que integra dados de GPS com um mapa náutico eletrónico] está a falhar, portanto estamos a orientar um navio de 70 toneladas com um iPhone”, acrescenta Filastine. A tripulação espera cair nas boas graças de “algum responsável solidário nas Marshall ou na Indonésia que permita a entrada”.

A embarcação é uma escuna de 1947, pelo que “a rota é ditada principalmente pela natureza”: “os ventos e as correntes irão levar-nos através das Ilhas Marshall em direção à Indonésia e às Filipinas”. “Quando lá chegarmos, será o início da época dos tufões nas Filipinas. O único destino prático é a Indonésia. Só precisamos de navegar lentamente e de sobreviver tanto tempo quanto possível. Os produtos frescos começam a escassear, mas ainda temos dois meses de produtos secos, como farinha, arroz e batatas”, relata Filastine, em nome de toda a tripulação. “Pescamos e fabricamos iscos com cabeças velhas de esfregona, corda e pedaços de purpurina, soldando lanças e ganchos numa pequena oficina” a bordo, explica.

O vento é a principal fonte de energia, uma vez que “o combustível está a ser poupado para emergências” ou para orientar a navegação para qualquer porto que eventualmente os aceite. “A eletricidade a bordo é abundante. Os painéis solares e o gerador eólico estão dimensionados para um desempenho acústico e de luzes, sendo mais do que suficientes para alimentar o sistema do navio”, assegura a tripulação. “Apesar de termos alguns mapas em papel, um iPhone é atualmente a nossa ferramenta de navegação mais completa. Pode soar patético, mas é muito mais informação do que os polinésios ou o Capitão Cook tiveram para atravessar o Pacífico”, remata.

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“Um palco autossustentável movido a energia solar e eólica”

O barco e a bandeira são holandeses mas, como descreve Pedro Beleza, “nenhum dos tripulantes a bordo tem afinidade especial com o país”. Içada está também a bandeira da Extinction Rebellion, um movimento global que apela à desobediência civil, não-violenta, para levar os governos a adotarem medidas de combate à perda da biodiversidade e ao colapso ecológico. O Arka Kinari é descrito como “um projeto artístico de ativismo que pretende refletir sobre o ser humano e a natureza”, tendo surgido como “um ato de resiliência contra a aparente inevitabilidade de dependência do capitalismo fóssil”.

“Como de certa forma nos sentimos cúmplices desse sistema, procuramos alternativas para expressar a nossa arte sem termos de depender do capitalismo fóssil”, sublinha o português a bordo. “A dimensão que trago ao barco é também o ativismo gastronómico. Trata-se de cozinhar politicamente, aplicar os métodos de consumo local, criar laços diretos com os produtores e fomentar relações de pequena escala”, acrescenta. O seu intuito é providenciar para si e para os seus companheiros “uma dieta baseada nos produtos locais e sazonais”, o que implica, prossegue, “um estudo prévio das dinâmicas socioculturais dos lugares onde aportamos e um entendimento da indústria alimentar que nos permite evitar práticas comuns, como as cadeias de refrigeração”.

O Arka Kinari é “um palco autossustentável movido a energia solar e eólica”, onde os artistas Grey Filastine e [a indonésia] Nova Ruth interpretam, através de performances, as suas preocupações e possíveis alternativas e soluções para a crise climática”. A mobilidade, as fronteiras e os desafios do futuro são outras das questões abordadas no espetáculo vídeo e musical que é projetado “do navio para a costa mais próxima”.

Além do português e do mentor do projeto, encontram-se atualmente a bordo do veleiro as britânicas Claire Fauset e Sarah Payne, o francês Yann Willard e o americano Benjamin Blankenship. À semelhança do que fez Pedro Beleza, os restantes membros da tripulação também tencionam contactar as respetivas embaixadas na Indonésia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hgomes@expresso.impresa.pt

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