Sociedade

“Quem sou eu para dizer ‘tu não podes fazer isso'?”: a eutanásia pelos olhos de uma filha

“Quem sou eu para dizer ‘tu não podes fazer isso'?”: a eutanásia pelos olhos de uma filha
NUNO BOTELHO

Susan foi diagnosticada com cancro em 2003, mas nunca quis ser tratada. Sete anos mais tarde, quando estava já em fase terminal, optou pela eutanásia. Tinha 70 anos. A filha, Lisa, que vive em Portugal há 28 anos, recorda como foi o processo.

Em 2003, Lisa Graasma recebeu um telefonema da mãe. As notícias não eram boas. Susan tinha feito uma biopsia e o resultado revelava que tinha cancro, melanoma. “Oh filha, aquilo está mal”, disse-lhe a mãe que, logo de seguida, anunciou que não queria ser tratada.

“Eu e a minha irmã obviamente não percebemos a decisão, mas aceitámos. Com um cancro e sem tratamento, já sabíamos o que ia acontecer. Naquela altura ela já estava a tomar a decisão”, recorda a filha, nascida na Holanda mas a viver em Portugal desde os 23 anos, há quase três décadas.

Susan Philipa Graasma-Joyce
Fotografia cedida pela família

Susan Philipa Graasma-Joyce nasceu na Austrália, onde voltava todos os anos para passar três meses, “mesmo quando estava doente”. Mudou-se para a Holanda onde casou e teve duas filhas. Foi lá, com 48 anos, que ficou viúva. E durante o internamento do marido já dizia à filha que não concordava com a forma como o tratavam no hospital.

Susan no dia do casamento
Fotografia cedida pela família

Com o tempo, Susan foi ficando mais doente e no último verão começou a tomar morfina. “Com morfina consegues viver”, diz, mas põe aspas com as mãos na palavra “viver”. “Consegues andar, consegues fazer as tuas coisas, mas entre agosto e dezembro ela piorou.” No final do ano toda a família rumou à Holanda. "Já não conseguia ler o jornal. Dizia-me: ‘Filha, anda cá ver, já não consigo ler’. E ela adorava ler”, recorda. “Se calhar é estranho dizer isto, mas eles sabem. Ela já sabia que ia morrer, porque durante o Natal já despediu da minha filha e do meu marido.”

Susan e as filhas. Lisa é a mais nova
Fotografia cedida pela família

Pouco depois, quando já estava em Portugal, o telefone de Lisa voltou a tocar. “Disse-me: ‘filha, vou para o ‘hospice’. Fui para casa e chorei, chorei, chorei. Sabia que seria a sua última morada. A nossa mãe está a dizer ‘vou-me embora’. Para mim isto é mais chocante do que pensar na eutanásia.”

Susan e as filhas ainda crianças
Fotografia cedida pela família

Na Holanda, um ‘hospice’ é o equivalente a uma unidade de cuidados paliativos, onde os pacientes recebem cuidados em permanência por uma equipa de enfermeiros. Segundo um estudo da BMC Health Services Research, 10% das mortes não súbitas no país ocorrem neste tipo de instituições.

“Era uma mulher extremamente forte, independente e não queria ser um fardo para ninguém. Claro que ela não era, nem para mim, nem para a minha irmã".

Susan e as filhas já adultas
Fotografia cedida pela família

O terceiro telefonema: “Se ainda queres falar com a tua mãe, tens de vir agora”

Quando a irmã ligou, Lisa largou tudo e foi para a Holanda. A situação da mãe tinha-se degradado, mal conseguia falar. “Eu ia ao ‘hospice’ todos os dias e claro, aquilo vai piorando, piorando. Um dia, disse-me: ‘Filha, eu já não quero. Não quero mais’”, recorda Lisa. “Eu e a minha irmã respeitamos e amamos a minha mãe. Quem sou eu para dizer ‘tu não podes fazer isso’? Portanto perguntei-lhe se tinha a certeza”

A resposta afirmativa deu o sinal de partida para o processo. Primeiro, Susan falou com a médica de família. Depois com um médico do ‘hospice’ e quando teve de escolher a hora para a partida apenas pediu que fosse "o mais rápido possível”. Era sexta-feira, mas por regras da instituição o procedimento só podia acontecer na segunda.

“Foi horrível. Agora estou bem, falo bem sobre o assunto, mas obviamente deitas-te e sabes que segunda-feira vais perder a pessoa que é tudo para ti.” Lisa emociona-se. Não chora, mas os olhos brilham com a intensidade das lágrimas a querer aparecer. “Queria ser forte para a minha mãe e a minha irmã também. Ia lá, até comprava flores… é estranho como as pessoas reagem.”

Susan numa fase em que a sua saúde já estava mais debilitada
Fotografia cedida pela família

Quando segunda-feira chegou, Susan falou com as filhas uma a uma. Lisa e a irmã deram-lhe um último cigarro e o derradeiro golo de brandy, a bebida de eleição desde jovem. Quando chegou o meio dia, a hora marcada, não saíram do lado dela.

“Quando lhe deram a injeção ficou assim", e Lisa baixa a cabeça a imitar o gesto da mãe. "Depois o médico disse 'vamos dar outra' e ela levantou-se e disse ‘Bye darlings’ e lá foi ela. Nunca me esquecerei disso. Mas depois… aí é diferente”, afirma. “A eutanásia não mete medo. A única coisa são as saudades e isso os portugueses sabem o que é. Saudades. É com isso que fico para o resto da minha vida.”

Lisa e a mãe, Susan.
Fotografia cedida pela família

"O tema da eutanásia é delicado, mas é liberdade”

Susan escolheu morrer em 2010. Desde então, Lisa continua a morar em Portugal e hoje acompanha o debate em torno da despenalização da prática no país. Com a sabedoria de quem a viveu de perto, defende abertamente a despenalização.

“Não quer dizer ‘vamos matar todos os velhinhos’. Não é disso que estamos a falar. A melhor amiga da minha mãe teve cancro do pulmão e lutou até ao fim, morreu no hospital. Podia ter feito a eutanásia, mas não fez. Não quer dizer que toda a gente o vá fazer. Tens de ser uma pessoa muito especial, e quem conhecia a minha mãe sabia que ela tinha o perfil de fazer isso.”

Lisa é contra o referendo. Acha que há muita gente em Portugal que quer a despenalização - a sondagem mais recente põe 50,5% dos portugueses a favor – e que com o referendo as crenças o podem impedir.

“Temos de respeitar as decisões dos outros”, reforça. “As pessoas às vezes dizem 'não vou querer fazer isso’. Não sabem, porque não sabem o que podem vir a sofrer. O tema da eutanásia é delicado, mas é liberdade.”

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