Sociedade

Muitas vezes o 'burnout' não se deve ao número de horas de trabalho, mas às condições

Muitas vezes o 'burnout' não se deve ao número de horas de trabalho, mas às condições
Paula Daniëlse/ Getty images

Um prédio destruído por incêndio: todo o interior ardido, pouco resta. Apenas a fachada está intacta e já não há estrutura. É esta a imagem usada para explicar alguém que se encontra em 'burnout'. Alguém que está para além de exausto, que já deu mais do que podia dar, embora por fora se mostre intocável. “Tal como o nome indica, burnout é estar todo queimado por dentro”, explica em entrevista ao Expresso Nídia Zózimo, médica e coordenadora do Gabinete Nacional de Apoio ao Médico, que presta apoio em casos de cansaço extremo - seja físico, mental ou psicossocial - e em casos de violência ou de agressão. Há dias a Federação Nacional dos Professores pediu ao Ministério Público para averiguar as causas da morte de três professores enquanto trabalhavam. Excesso de trabalho pode ser uma causa de morte?

Muitas vezes o 'burnout' não se deve ao número de horas de trabalho, mas às condições

Marta Gonçalves

Coordenadora de Multimédia

O que é o burnout?
É algo que acontece sempre em contexto de trabalho e, se assim não for, é outra coisa como uma depressão ou outro tipo de problema. É síndrome ligado ao trabalho, sobretudo às pessoas na linha da frente e que são responsáveis por vidas. Por exemplo, os controladores aéreos, os polícias, os médicos. Os professores têm muito burnout. Normalmente as horas de trabalho podem não ter uma relação direta de trabalho, têm influência as condições de trabalho, a responsabilidade e a exigência pedida (no caso dos médicos, em vários grupos, não é tempo trabalhado mas as condições). Trata-se de uma situação extrema e, quase sempre, antes de chegarem a esse ponto as pessoas têm exaustão, sobretudo emocional. O burnout quer dizer que a pessoa já está completamente queimada, que pode estar ali a trabalhar mas já nem consegue empatizar nem funcionar bem. O burnout é como se fosse uma casa que teve um incêndio enorme lá dentro, que está toda destruída mas a fachada está intacta. Chama-se burnout porque foi com esta imagem que o primeiro psiquiatra descreveu a síndrome.

Pode morrer-se por burnout?
Nunca se pode dizer que alguém morreu por burnout sem averiguar o que aconteceu. Habitualmente, quando se morre por burnout, as pessoas suicidam-se. Os médicos têm uma taxa de suicídio superior ao resto da população, tal como os polícias. Provar que alguém morreu por exaustão de trabalho implica excluir outras causas, é preciso provar que a pessoa não descansou e que não teve condições de trabalho durante um determinado tempo. Acontece na Ásia, por exemplo, onde fazem trabalho escravo. Em Portugal é uma raridade algo assim. Outro exemplo: nos bombeiros ou nos comandos pode-se morrer por exaustão, mas isso não é burnout. É exaustão do corpo. Alguém que está há quatro dia a combater o fogo, mal come, praticamente não dorme e anda ao calor, cai para o lado. Se não é assistido rapidamente pode morrer. Isso são situações extremas e têm causas extremas.

Pelo contrário, o burnout não acontece em poucos dias. As pessoas são submetidas a condições de trabalho e de exigências múltiplas. Em resumo: nunca se pode dizer que alguém morreu de burnout sem conhecer o caso, morrer por burnout é uma coisa sempre por exclusão e tem de ter determinados contornos. Obviamente estou mais dentro do caso dos médicos mas não são apenas médicos. Por exemplo, os médicos do mundo ocidental têm uma esperança média de vida sete anos inferior ao resto da população porque não cumprem as regras como os outros: têm ciclos de sono que aumentam o cortisol, provocam distúrbios imunológicos e o risco de quase todas as doenças - incluindo tumores e cardiovasculares - surge em idades menos avançadas do que na população em geral. A Organização Mundial de Saúde já reconheceu o burnout como doença mas isso ainda não passou para a legislação. O burnout em si é causa de muita coisa mas não se pode afirmar sem conhecer pessoa a pessoa qual é causa de morte.

Há dias a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) pediu ao Ministério Público para investigar a morte de quatro professores. De acordo com o “Observador”, um deles morreu enquanto corrigia testes em casa. Esta situação em específico não se associa a um momento de stress. O que pode ter acontecido?
Não conheço os casos, não me pronuncio sobre casos em específico e, novamente, enquanto não se souber as causas de morte não se pode dizer que aconteceu por burnout. É preciso saber se essas pessoas não tinham doenças prévias. O burnout pode acontecer nesses momentos mais calmos: há uns que caem para o lado no momento da cirurgia, outros fazem tudo direito e só caem depois em casa. Uma morte súbita, à partida, tem sempre autópsia - exceto se a pessoa tinha uma doença fatal já conhecida. Por exemplo, se tiver um aneurisma cerebral podia estar a corrigir testes e o aneurisma rebentou e caiu para o lado.

Portanto, só se a autópsia for completamente branca é que se pode dizer que foi por exaustão (e pode ser por exaustão mas não por burnout). É preciso saber as condições de trabalho, se foi pela pressão.... Não conheço estes casos, claro que seria bem mais interessante dizer: sim, senhor, o burnout mata. Mas não podemos provar que determinada morte foi devido ao burnout sem sabermos o que aconteceu. Os professores não fazem horários nocturnos, supostamente também não trabalham ao fim de semana, têm um horário mais ou menos regular. Têm burnout pelas condições de trabalho e pelo modo como exercem a profissão, mas não se pode dizer que são dos grupos mais suscetíveis.

Já referiu que os médicos são das profissões mais suscetíveis de burnout. Que outras mais?
Os polícias também têm muito. São as profissões que estão na linha da frente e que obrigam a uma resposta rápida. Porque é que os médicos têm mais do que os enfermeiros? Porque a responsabilidade das decisões é do médico. Factores como este, mais o lidar com e ser responsável por, sabendo que errar pode ser catastrófico potencia o burnout. No caso dos médicos, em que o ordenado sempre foi mau, o que está a piorar muito são as condições de trabalho, o modo como a população trata de quem cuida deles. Não ter condições físicas, tecnológicas e de tempo para o trabalho que se precisa de fazer é das coisas que mais predispõe ao burnout. A exaustão emocional nos médicos anda à volta dos 70%, o burnout é perto de 40%.

As instituições, muitas vezes, em vez de tentarem perceber o que se passa com este trabalhador que era muito bom e está a funcionar pior, culpabiliza-o ainda mais. Isso agrava a situação e leva à despersonalização e exaustão. No entanto, há pessoas que trabalham muito e que têm todas as condições para estarem exaustas e não estão: mesmo trabalhando muito, se sentir que a reconhecem, que está a ser útil e que a instituição lhe dá as condições para trabalhar, é tudo diferente. Os médicos são completamente trouxas, continuam a trabalhar e são capazes de dizer que gostam muito do que fazem. O que salva os médicos é que a maior parte gosta mesmo muito daquilo que faz.

Há alguma forma de evitar o burnout?
Primeiro, preparar os médicos e dar-lhes as ferramentas para saberem que os problemas existem, têm de estar alertados para os riscos de burnout e como se podem proteger. Isto é uma questão de organização e condições de trabalho, que são da responsabilidade do Ministério, no caso da medicina, e das instituições e empresas. Um exemplo que dá cabo dos médicos: a informática. Se tem um sistema informático que crasha, que falha e têm de atender um paciente em 15 minutos, isso não dá para ligar e desligar o computador, tentar que a receita chegue, não dá para fazer tudo. Isto é organização de trabalho.

É possivel tratar o burnout?
Sim. Normalmente é abordada a vida da pessoa para ver o que se pode mudar. Os médicos têm de se convencer que não são Deus e que não fazem milagres. Prevenir o burnout é trabalhar com o profissional que está em risco para que este consiga ter tempos livres e outros interesses fora da medicina que aliviem o stress. Quase nenhum médico faz aquilo que manda o paciente fazer quer a nível físico quer a nível psicológico. Tem de se conseguir pôr o médico a não viver completamente dentro do trabalho, tem de se dar condições de trabalho. E depois, é essencial que reconheçam o trabalho que fazem e a dignidade da profissão.

Ouve-se muito falar no assunto nas variadas classes profissionais. Isto acontece mais porque o contexto laboral está pior ou simplesmente se ouve mais falar sobre o assunto e as pessoas estão mais sensibilizadas para o assunto?
As duas coisas. A Ordem dos Médicos promoveu um inquérito aos médicos no início do pós troika sobre o estado dos profissionais do sector. Se fosse feito hoje, os resultados eram piores. Havia esperança que pudesse melhorar e, afinal, a única coisa que aconteceu foi a devolução de parte dos cortes. Apesar de a troika ter ido embora e de nos terem devolvido parte dos cortes do rendimento, as condições em que os médicos estão a trabalhar não melhoraram nada: nem a nível tecnológico, nem ao nível de construção de equipas.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mpgoncalves@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate