Sociedade

Entrevista a Miguel Bastos Araújo: “Trabalhar em ciência é como ser um atleta de alta competição”

20 maio 2019 16:20

Carla Tomás

Carla Tomás

Jornalista

Miguel Bastos Araújo, fotografado no Museu Nacional de Ciências Naturais de Madrid dias depois de ser galardoado com o Prémio Pessoa 2018

O biogeógrafo Miguel Bastos Araújo recebe esta tarde o Prémio Pessoa 2018, uma iniciativa do Expresso e da Caixa Geral de Depósitos, que visa distinguir a personalidade portuguesa que tenha sobressaído nas áreas da Ciência, Cultura, Artes ou Literatura. Em 2018, o júri decidiu, pela primeira vez em 32 edições, atribuir o prémio a alguém da área do ambiente. Miguel B. Araújo tem-se dedicado a estudar os efeitos das alterações climáticas na biodiversidade. Para o premiado, tal escolha revela "um statment", como que "a dizer que o ambiente já é parte do nosso imaginário cultural". O Expresso republica aqui a entrevista que lhe fez em Dezembro de 2018

20 maio 2019 16:20

Carla Tomás

Carla Tomás

Jornalista

Miguel Bastos Araújo soma prémios internacionais, mas o Pessoa é especial, por ser o primeiro que recebe "em casa". Apesar de se sentir "um estranho dentro e fora de Portugal" e de falar quatro línguas, continua a sonhar em português. O Expresso entrevistou-o e fotografou-o em dezembro passado no Museu Nacional de Ciências Naturais, em Madrid, onde trabalha desde 2007. Ao mesmo tempo, é investigador nas Universidades de Copenhaga e de Évora (onde dirige a cátedra dedicada à biodiversidade).

O júri do Prémio Pessoa, presidido por Francisco Pinto Balsemão, sublinhou o mérito do trabalho de Miguel Bastos Araújo "numa altura em que, no plano político, económico e cultural, a nível global, se erguem tantas vozes e forças poderosas, criando obstáculos ao contributo das ciências para o estudo e a busca de soluções para os problemas fundamentais da sobrevivência humana, nomeadamente no que respeita à crise do ambiente e das alterações climáticas".

Obcecado, como todos os cientistas devem ser, passa grande parte dos dias a trabalhar - muitas vezes em casa, numa zona rural a cerca de uma hora de Madrid, para poder acompanhar o crescimento dos filhos. Vem uma semana por mês a Évora e conta passar a reforma em Portugal. Será como voltar a casa.

A primeira reação ao Prémio Pessoa foi de "orgulho" e "choque". Já tinha recebido vários prémios em Espanha, na Dinamarca, no Reino Unido. Receber um prémio "em casa" tem outro sabor?
É difícil explicar o que se sente quando se tem o reconhecimento pelo nosso trabalho na nossa 'casa'. É o que o biólogo Edward Wilson chama de "monkey troop", que podemos traduzir como tribo, fazendo a analogia com a evolução biológica. Todos os humanos têm a sua tribo e gostamos de ser reconhecidos nela. Há diferentes ordens de identidade: a tribo europeia, a dos cientistas e que é a nossa casa, neste caso a portuguesa, onde ainda não tinha recebido nenhum prémio. O afagar do ego é bom e serve de estímulo para continuar a trabalhar, sobretudo quando as outras coisas falham. Mas também há o perigo de se perder a clarividência.

Já a perdeu?
Não, porque estou consciente dos riscos.

Este prémio colocou a ciência ambiental debaixo dos holofotes?
É a primeira vez em 32 anos que este prémio é dado à ciência do ambiente. E muitos estão contentes com isso. Os outros prémios que recebi eram dados pelos pares na minha área de trabalho. Com este Prémio Pessoa estamos a consolidar a área da ciência em Portugal, um país onde, tal como em Espanha, nunca ocupou um papel muito importante. A intelectualidade ibérica é muito virada para as artes e para a literatura, para a cultura em sentido lato. Não há uma cultura científica muito forte. Já no Reino Unido ou em França, onde existem revistas científicas muito importantes, há uma cultura popular científica forte.

O facto de ser um 'estranho' dentro de Portugal e receber este prémio também é marcante?
Sim. Sou um estranho dentro e fora de Portugal. Quando somos de todo o lado, não somos de lado nenhum.Sente-se como alguém de lado nenhum?
Não. Sinto-me europeu acima de tudo.

E português?
Sinto-me português, mas já vivi mais anos fora de Portugal do que em Portugal e nasci fora de Portugal. Se tiver de escolher uma identidade, escolho a europeia. Sinto-me europeu. Sinto-me muito em Inglaterra, em Espanha, na Dinamarca, que são os países onde vivi, e em cada um deles tenho coisas de que gosto muito e com as quais me identifico.

A sociedade portuguesa está mais atenta a estas áreas?
Penso que sim, que tem havido mais investimento em ciência em Portugal e em Espanha. Há muito mais gente ligada à ciência, e isso transvaza para a sociedade.

O júri frisou que esta é uma altura em que estas questões, sobretudo as ligadas às alterações climáticas, são essenciais para a sobrevivência humana.
Há mais consciência de que estamos perante uma crise global ambiental e que é preciso tomar medidas locais e globais. É o grande paradigma de todo o trabalho que se tem vindo a fazer desde os anos 80 do século XX. Gro Harlem Brundtland, aquando da primeira conferência mundial da biodiversidade e desenvolvimento sustentável, escreveu o relatório "O Nosso Futuro Comum" e popularizou o conceito de desenvolvimento sustentável, que foi a palavra-chave da Conferência do Rio em 1992. A máxima desse relatório resume-se numa frase: "Pensar globalmente e agir localmente." Hoje em dia já se pensa e atua globalmente.

tiago miranda

A última conferência mundial do clima [COP24] não correspondeu à urgência pedida pelos cientistas. Como vê este resultado?
Não olho para esta COP em particular. Como cientista, tenho de ter uma perspetiva mais a longa distância. O comboio está a andar e é imparável. António Guterres disse que não há plano B nem planeta B, e é verdade. Como tal, este é o caminho. Os sectores que dependem do consumo de carbono estão conscientes de que vão ter de mudar de vida, mas querem tempo para se adaptar. Os atrasos devem-se a essa estratégia de querer ganhar tempo.

Considera que "o comboio está em andamento"? Com a chegada de Trump e de Bolsonaro, não teme retrocessos significativos?
Penso que são fenómenos de transição. Estamos numa fase de transição e não sabemos qual será a nova ordem civilizacional. Fenómenos erráticos como Trump e Bolsonaro funcionam como fenómenos de pêndulo que dão uma resposta contrária aos que lhes antecederam. Obama foi bastante arrojado nas suas políticas de alterações climáticas e sociais, e Trump aparece com a resposta contrária. No Brasil aconteceu o mesmo. Tenho esperança de que seja um facto estocástico num percurso de transição. Como não há plano B, mais tarde ou mais cedo os sinais serão tão graves que as coisas vão ter de mudar. O relógio está a contar, e os meus filhos e netos já vão viver num mundo bem diferente do nosso.

Recusa o discurso catastrofista?
Estou consciente de que a crise é grave, mas um discurso catastrofista não serve de muito. Serve para fazer notícias, para que eventualmente algumas pessoas mudem comportamentos, mas também gera uma certa apatia se o discurso for repetido ano após ano. A catástrofe vem aí e é quase silenciosa quanto à extinção das espécies. Em todas as crises há vantagens e desvantagens, e as desvantagens são muito maiores do que as vantagens, mas não devemos pintar o cenário de branco ou de preto.

É uma utopia pensarmos no conceito de desenvolvimento sustentável? Até que ponto é possível a coexistência entre os humanos e a biodiversidade?
Temos andado a dizer que é possível. O E. Wilson, que é o maior biólogo vivo, não acredita que seja possível. Se olharmos para as trajetórias demográficas, com o constante crescimento da população mundial, o aumento da ocupação da Terra e de luta pela matéria verde e uma série de impactos crescentes, vemos que não estamos numa trajetória de sustentabilidade e que não é fácil chegarmos a ela. Perante os riscos elevados, Edward Wilson sugere que se divida o mundo ao meio...

Homens para um lado e natureza para o outro?
Sim, no fundo é aplicar o conceito de reservas naturais de uma forma mais extensa do que a que existe. Ele propõe a criação de áreas muito extensas que cubram metade do planeta e que as deixem ao deus-dará.

E isso é possível sendo o Homem o predador que é?
Tudo é possível se a Humanidade assim o determinar. Quando se começou a falar de áreas protegidas, a meta era preservar 10% do planeta. Chegámos lá, e a nova meta é estender essa proteção ao meio marinho. Mas uma coisa é definir essas áreas protegidas e outra protegê-las efetivamente. Muitas são-no apenas no papel. Na Europa não será tão difícil, porque há muita concentração da população nas cidades e muita da atividade primária é feita por outsorcing. Em Portugal e Espanha, as áreas protegidas já ocupam cerca de 20%, e penso que não é impossível criarmos sistemas mistos com regras que restrinjam a atividade humana. Podem criar-se mecanismos de mercado que valorizem os serviços dos ecossistemas e a sua conservação. E podem utilizar-se mecanismos fora de mercado aplicando taxas que servem para compensar esses serviços e criar fundos ambientais. Mas existe alguma reticência em valorizar na justa medida o valor que os ecossistemas nos dão, que é a possibilidade de viver neste planeta. É um valor incalculável.

As alterações climáticas estão mais na agenda do que a proteção da biodiversidade. Porquê?
Porque apesar de ambas poderem afetar a nossa sobrevivência no planeta... a extinção das espécies é mais difícil de explicar.

E como a explicaria de forma simples?
Existe uma explicação utilitarista e outra não utilitarista. Quem aprecia a biodiversidade pensa na dimensão ética e moral e não na perspetiva utilitarista. A ética e a moral comandam a vida das civilizações, e não devemos esquecer essa dimensão. É considerado imoral que haja uns que têm muito dinheiro e outros que não têm nenhum. Criaram-se mecanismos de redistribuição de riqueza, inventou-se a social-democracia e o comunismo como formas de tentar desvanecer essas assimetrias sociais ou como mecanismo de solidariedade geracional. Brundtland acrescentou que essa solidariedade também tem de existir para os que hão de vir.

E em relação à biodiversidade?
Em relação a biodiversidade, Wilson defende que nós, seres humanos, temos um instinto natural de amor pela vida que extravasa a nossa própria vida. Há muitas pessoas que valorizam a natureza e outras formas de vida sem verem nisso um valor económico ou de utilidade. Depois existe o discurso monetário. Quanto valem os serviços dos ecossistemas? Quanto valem os insetos que polinizam as plantas e nos permitem ter comida para comer? O que seria o mundo sem abelhas? Isso é fácil de comunicar. Se há quebras brutais de peixes nos oceanos que obrigam a limitar a pesca, é mau para nós e é mau para toda a cadeia trófica, que afeta o ciclo dos ecossistemas, nomeadamente o ciclo do carbono. Tenho estado a trabalhar ultimamente nestas cadeias tróficas. Alterar algumas peças deste puzzle pode ter efeitos dramáticos em toda a dinâmica do ecossistema. Afeta a capacidade de absorção do carbono e o grau de acidificação do oceano. São muitos elementos encadeados, e nós somos o elefante na casa de porcelana. Vamos partindo coisas e levando espécies à extinção e não nos apercebemos sequer das consequências que isso tem.

Já entrámos na sexta extinção em massa e estamos a carregar no acelerador?
Sim, mas é um processo geológico que vem de longe. Iniciou-se quando os humanos saíram de África, há cerca de 100 mil anos, e começaram a colonizar outros continentes com impactos brutais. Agora estamos na quarta etapa desta sexta extinção em massa, com a atividade humana a interferir com alterações globais e o planeta a enfrentar a extinção de espécies a um ritmo ainda mais sangrante. Estamos a alterar os ritmos bioquímicos do planeta a uma escala global.

O que dizem as projeções em que tem trabalhado?
As projeções são pessimistas. As zonas polares estão em vias de desaparecer e tudo o que é fauna polar, incluindo o urso polar, também. Não só porque desaparece o habitat mas também porque passam a ter de competir por esse habitat com uma fauna que vem de sul. A questão é saber quando se irão extinguir. E na realidade só conhecemos uma ínfima parte da biodiversidade do nosso planeta.

Um dos projetos em que trabalhou incide sobre as consequências das alterações climáticas na população já ameaçada de lince-ibérico. O que indicam essas projeções?
Há uma sobrevalorização da adequabilidade do habitat em que se encontram as populações de lince-ibérico em Portugal e em Espanha, concentradas no sul [Alentejo e Andaluzia] quando terão mais condições de viabilidade no norte da Península. O lince alimenta-se sobretudo de coelho, e o coelho alimenta-se de erva fresca. Ora, num ambiente que está a ficar árido, é óbvio que o coelho terá menos condições a sul, e como tal o lince também. A pior estratégia é a atual, enquanto a translocação otimizada permite uma aumento substancial da densidade demográfica dos linces.

Os governos de Portugal e Espanha não seguiram os conselhos dos cientistas, pois não?
Existe uma décalage entre a política de conservação atual e uma política de conservação que já integra as alterações climáticas. É uma contradição.

As únicas espécies animais que se dão bem com a presença humana são os ratos e os pombos?
Sim [risos]. Estamos a excluir umas espécies e a favorecer outras, como os pombos ou os ratos em cidades ou espaços agrícolas, que vão criar material genético para a evolução da vida. No Antropoceno, nós somos a força dominante de seleção natural. E ao transformarmos os ecossistemas da maneira como os transformamos estamos a prejudicar espécies de tamanho grande. Já constam das listas vermelhas de ameaça e são as primeiras a desaparecer.

É melhor que o Homem não chegue a alguns pontos do mundo para não estragar ainda mais...
Essa é a perspetiva de Wilson. O desenvolvimento sustentável não tem sido capaz de inverter a tendência de extinção de espécies. A única maneira é sermos mais contundentes na política de conservação que valoriza a biodiversidade pela biodiversidade, a natureza pela natureza, sem necessariamente a ela associar uma contrapartida económica. A contrapartida é não partirmos demasiada louça na nossa casa de porcelana. Os ecossistemas são responsáveis por grande absorção de CO2 da atmosfera, e a biodiversidade, se bem gerida, é uma aliada na luta contra as alterações climáticas.

De que modo?
Há um conjunto de stocks que temos de saber gerir para fazermos a gestão planetária do problema do carbono. Temos de tentar reduzir as emissões que vêm das reservas dos combustíveis fósseis, porque dois terços das emissões provêm daí e o resto da desflorestação, má gestão de habitats e uso do solo. Mas há uma grande parte que é reciclada e reabsorvida pela biosfera terrestre. O que defendemos é descarbonizar a economia e fazer a gestão dos ecossistemas, para não permitir a sua destruição e a libertação do carbono que neles existe.

Vamos a tempo de travar as consequências das alterações climáticas e a extinção de espécies?
Não tenho uma bola de cristal. Se olharmos para o que fizemos no passado, o que estamos a fazer e o que projetamos para o futuro, vemos que não vamos a tempo. Eu procuro ter uma abordagem otimista, porque se não a tiver o melhor é arrumar as botas. Sou otimista no sentido em que acredito que a Humanidade, em algum momento, vai aperceber-se que tem de mudar de vida.

Como biogeógrafo, o que está a tentar saber, conhecer ou descobrir
Estou a fechar uma etapa. Durante 20 anos trabalhei com modelos de distribuição de espécies, no tempo e no espaço, em especial tendo em conta a interferência do clima. Interessava-me a incerteza e como geri-la. Agora estamos a propor guidelines para definir standards para fazer os diagnósticos da saúde do planeta. É uma maneira de gerir a incerteza e os resultados que saem dos modelos e de aferir qualidade à literatura científica. Tivemos muita dificuldade em publicar este artigo porque muitos cientistas revisores eram contra a ideia. Mas isto já não é só ciência e sim um interface entre a ciência e a política, e é importante que se façam consensos e que a informação seja validada de alguma maneira. É um passo de gigante, apesar de parecer hermético.

O facto de ter nascido com o estatuto de refugiado político quando o seu pai estava exilado em Bruxelas marcou-o de alguma forma?
Não, porque só percebi o significado e a carga muito mais tarde. Vim para Portugal com 5 anos e adaptei-me bem, mas foi uma mudança. Estava bem em Bruxelas.

O francês a par com o português foram as suas línguas-mãe.
Sim, mas já me senti mais francófono. Falo quatro línguas, e há registos em que me sinto melhor numas do que noutras. Em termos de comunicação científica é o inglês. Mas continuo a sonhar em português. Em termos de comunicação global, o português é a minha língua.

tiago miranda

O que o fez querer seguir um percurso académico fora de Portugal?Escolhi Abardeen, na Escócia, para fazer Erasmus porque o meu inglês era bastante rudimentar e sempre me tinha considerado um francófono...

Um país com um inglês de sotaque muito particular...
[risos] Sim, com um sotaque muito particular. Apesar de tudo, na academia, é um sotaque que se percebe, mas fora da universidade era mais difícil. O meu nível de inglês era tão básico que pedi aos professores para fazer os primeiros ensaios em francês, e eles aceitaram. Na Escócia descobri a extraordinária academia anglo-saxónica e coisas como ter a biblioteca aberta 24 horas por dia e poder ir consultar livros à meia-noite. Já se trabalhava com computadores e e-mail e internet, que em Portugal não havia. Outra coisa foi deparar-me com uma academia bastante flexível, onde pude estudar Botânica e Biogeografia, algo que era impossível em Portugal. Ainda me tentaram aliciar para fazer o mestrado em Planeamento Regional e Urbano em Portugal, mas não era essa a minha praia e acabei por escolher o University College de Londres.

E como correu?
No final do mestrado aconteceu uma coisa que mudou a minha vida. Um senhor, chamado Dick Vane-Wright, do Museu de História Natural de Londres, veio dar-nos um seminário que abriu os meus horizontes e colmatou as lacunas que existiam na minha cabeça. Disse que o valor de um ecossistema não é absoluto, mas relativo, e que se tivermos de escolher uma rede de áreas protegidas não vamos escolher a que tem mais espécies raras ou mais bonitas mas as que se complementam mais entre elas e que maximizam os valores globais da biodiversidade. No fim da aula fui dizer-lhe que gostava muito de fazer um estágio no Museu de História Natural de Londres e de introduzir os dados sobre as áreas protegidas em Portugal naquela ferramenta, para ver se o modelo português era adequado.

Qual foi a resposta?
Ele disse-me para escrever as minhas ideias. E eu estava tão entusiasmado que fui para o computador e escrevi-lhe uma carta. Ele disse que as ideias lhe interessavam, mas que eu teria de pagar uma propina de 3500 libras. Para mim, era muito dinheiro.

Mas tinha apoios. Os seus pais eram ambos professores universitários.
Sim, ajudaram-me no mestrado, mas naquela altura já não me iam pagar o estágio. Eu cheguei a Portugal e escrevi um miniprojeto e pedi apoio à Gulbenkian e ao British Council, mas das 6000 libras que pedi consegui cerca de metade. O Dick Vane-Wright acabou por me dizer que não me cobravam as propinas e no fim do estágio desafiou-me para fazer o doutoramento.

Mas antes disso voltou para Portugal e esteve a trabalhar na Universidade de Évora...
Estive a trabalhar num projeto de seleção de áreas para ecoturismo, com uma rede de percursos ecoturísticos que ainda hoje é usada no Alentejo. Quando terminei a tese de doutoramento, em 2000, sobre como identificar áreas importantes para a conservação da biodiversidade, a conclusão óbvia é que isto presumia um mundo estável. E se o mundo não for estável? E se o clima forçar as espécies a moverem-se de um sítio para outro? Como criar áreas protegidas que permitissem esta adaptação foi o trabalho seguinte.

Quando acabou o doutoramento, pensou em regressar a Portugal, mas encontrou barreiras. Sentiu que lhe fecharam portas?
Sim. Durante muito tempo tive o desejo de regressar a Portugal. Mas depois de acabar o doutoramento ainda fui para França e para Oxford e ainda estive como professor associado convidado na Universidade de Copenhaga. Foi nessa altura que concorri a um lugar na Universidade de Lisboa, e foi muito caricato. Segui as instruções que estavam no concurso e recebi uma mensagem a dizer que a minha aplicação não tinha sido considerada por falhas processuais. Uma delas era não ter indicado o nome do meu pai e da minha mãe na carta de apresentação, o que é absurdo. Depois percebi que era um concurso de promoção interna e que por imperativos legais apresentavam como um concurso externo. Nem sequer havia orçamento para uma nova pessoa no quadro. Existe obviamente endogamia.

Isto só acontece em Portugal?
Em Inglaterra, se é uma promoção interna, é uma promoção interna. E, se é um concurso aberto, abre-se um concurso. Eu sou apologista de concursos abertos, e quanto mais abertos melhor, para se abrir as portas a mais pessoas. Usar concursos abertos para fins que não o são é errado e leva à frustração. Eu senti-me frustrado e achei que era desonesto por parte da universidade em questão.Um percurso internacional abria-lhe mais as portas, mas queria regressar a casa...
Queria regressar por razões emocionais. Mas continuei no estrangeiro e pouco tempo depois, em 2007, consegui uma posição permanente, muito interessante, no Museu de Ciências Naturais de Madrid.

Em Portugal cristaliza-se o poder?
Em Portugal temos uma grande admiração cultural pela senioridade e abrem-se todas as portas no final da carreira. Na Dinamarca, o percurso é o contrário, abrem-se todas as portas a quem dá indícios de vir a ter uma carreira brilhante, para que não se desgaste em miudezas, burocracia ou dificuldades de financiamento.

Como vê a ciência em Portugal?
Em Portugal, um problema grave é a imprevisibilidade, a frequente alteração das regras do jogo. O investigador é uma pessoa obcecada por definição e precisa de estabilidade, de previsibilidade, e o sistema português não é assim. Nunca se sabe quando são os concursos. E, quando os há, vão todos, há uns que ganham e muitos que perdem, e a frustração é enorme.

Isso deve-se ao facto de em Inglaterra existir uma cultura científica que não temos em Portugal?
Sim, culturalmente, a ciência em Inglaterra ocupa um lugar central. As pessoas leem ciência com regularidade, há programas na rádio sobre ciência onde não se baixa o nível para que as pessoas entendam. Portugal deu passos enormes, mas o nosso ponto de partida é diferente. Não é por acaso que os Descobrimentos não deram lugar a nenhum Darwin ou Wallace.

Não está no nosso código genético?
Não está [risos].

tiago miranda

Está como professor convidado na Universidade de Évora...
É uma relação que funciona, estou aqui, estou lá. É o melhor de dois mundos. Em Portugal, há mais concursos para bolsas do que em Espanha, mas não há emprego científico, algo que existe em Espanha, mas lá esgota-se o orçamento todo para bolsas e projetos.

Como surgiu a sua ligação à Cátedra Rui Nabeiro, em Évora?
A cátedra foi criada e eu concorri. Foi financiada durante cinco anos e acabou. Estou a dirigir a cátedra, que neste momento não é financiada. Mas continua a existir até surgir outro mecenas.

Mas como funciona neste momento?
É financiada por outros projetos. A vantagem de ter um financiamento estrutural é que permite pensamento estratégico. Quando isso não acontece, tem-se uma abordagem mais oportunista e vai-se buscar o dinheiro onde ele está.

O Prémio Pessoa pode trazer novos investidores para a cátedra?
Esperemos que sim. A Universidade de Évora é pequena, mas em termos de produção cientifica na área do ambiente é grande. O que tem faltado é um chapéu de chuva que consiga agrupar toda esta massa crítica.

É um dos cientistas mais citados a nível internacional. Há um outro português, sabe quem é?
É um investigador na área da Física que esteve na Universidade de Évora e que agora está na do Minho. Chama-se Nuno Peres.

O que possibilita estar nesse ranking?
Os padrões de citação e de publicação servem de métrica para a maneira como os investigadores são avaliados.

Este prémio dá mais visibilidade ao seu trabalho?
Um prémio como o Pessoa traz muita exposição, mais do que eu pensei. É bom para a minha carreira, é bom para a minha equipa, é bom para a Universidade de Évora, é bom para o museu aqui em Madrid e para as ciências do ambiente em geral, e em particular para a biodiversidade. Quando o júri do Prémio Pessoa decide dar pela primeira vez em 32 edições o prémio a alguém da área do ambiente, está a fazer um statment. Está a dizer que o ambiente já é parte do nosso imaginário cultural, da cultura portuguesa, e isso é o mais importante. O ambiente ocupa um lugar ao lado da música de Maria João Pires ou da poesia de Manuel Alegre.

Dizia há pouco que um cientista tem de ser obcecado. Vê-se como um obcecado?
Acho que sim. Muitos cientistas foram maus alunos na escola. É lendária essa fama no Einstein. Mas eu fui um bom aluno, porque a universidade interessava-me. Para se ser um bom investigador, a característica principal é estar muito tempo a fazer a mesma coisa. Estou há 20 anos a estudar a biodiversidade e as influências do clima. O investigador pode ser medíocre em muita coisa, mas tem de ser capaz de passar milhares de horas a estudar um único tema. Ninguém consegue criar conhecimento novo se não passar mais de 10 mil horas num tema.

Trabalha mais como investigador, mas gosta de ensinar...
Gosto, mas não gosto da burocracia associada à vida académica. Falha em Portugal a burocracia.

Tem colegas há anos como bolseiros e alguns catedráticos que se perpetuam. Isso cria barreiras ao desenvolvimento científico?
Também acontece noutros sítios. As pessoas tendem a reciclar-se. Há imensos cargos, e o importante é ter capacidade de encaixar as pessoas em fases diferentes da vida, porque não somos criativos durante toda a vida.

Quando vai chegar ao seu limite?
Não sei. A década dos 20 é a fase do grande deslumbramento, da grande curiosidade, da descoberta e da luta por um lugar. Nos 30 conseguimos afirmar-nos numa área de trabalho. Aos 40 brilhamos e somos especialistas com uma trajetória de 20 anos ou mais. E aos 50 não sei ainda [dá uma gargalhada].

Como consegue conciliar o trabalho com a vida familiar?
Não é fácil. Consigo porque a minha mulher optou por se dedicar principalmente aos filhos. Tenho três, com 2, 6 e 9 anos, e uma rapariga de 23 anos de outra relação. Se fôssemos os dois investigadores era mais difícil. Faço muito trabalho em casa, e assim compenso as minhas ausências. Estou presente nos almoços, nos jantares, etc. Tenho a certeza que os investigadores não devem estar classificados no mundo da paternidade e da maternidade como os melhores pais e as melhores mães. Esta obsessão tem um custo. A minha filha mais velha está a fazer o estágio profissional na área de Economia e Relações Internacionais.

Que conselhos dá aos seus alunos?
Que façam o que gostam, porque foi o que eu sempre fiz. Só é preciso ter continuidade quando se gosta muito do que se faz. Felizmente, o que faço tornou-se mainstream, e nisso tive sorte. Mas, quando comecei, estes assuntos não estavam no centro do debate. Não tive pensamento estratégico, de todo. Achava importante esta área no conjunto das perguntas que tinha na minha cabeça.

E que começou a ter aos 11-12 anos, certo?
Sim, quando comecei a perguntar porque é que os animais se distribuíam da maneira como o faziam. Tive muita influência do meu avô e do meu pai. O meu avô, porque me contava histórias de África, onde era eletricista, caçador, piloto e fotógrafo da natureza. Passava muito tempo na selva. E o meu pai, como é biólogo, trouxe para casa um terrário e pudemos ver como a fêmea do louva-a-deus comia o macho no fim da cópula. A minha mãe é engenheira química, mas esta área não me fascinava muito. Trabalhar em ciência é como ser um atleta de alta competição. Durante uma fase da vida há que trabalhar horas e horas e horas e horas. Se não o fizer, não se chega lá. Sem obsessão, a pessoa não se consegue entregar tanto.

Como olha para o modo como as áreas protegidas e a conservação da natureza são cuidadas em Portugal?
[suspira] Ai... Portugal tem uma grande complicação que é o facto de as áreas protegidas serem locais onde existem aldeias, casas, estradas e até fábricas, como na Arrábida. Obviamente, existem conflitos. Há uma sobreposição entre estas áreas e as pessoas que não é ideal. Mas acredito que alterar a situação não seria fácil para nenhum governo. Outro problema é a questão do financiamento. Tudo entronca no dinheiro. É preciso um grande investimento público nestes espaços, que devem ser sobretudo para a conservação da natureza, apesar de poder haver alguma compatibilização de usos. Deve haver investimento ou capacidade de gerar dinheiro, por exemplo cobrando portagens para se entrar nas áreas protegidas. Claro que não cobrando a quem lá vive e beneficiando essas pessoas pelas atividades que promovem para a conservação da natureza ou por cuidarem da floresta. É incompreensível que haja loteamentos dentro de áreas protegidas, como acontece em Portugal.

Os portugueses dizem estar preocupados com as alterações climáticas, mas não têm a mesma atitude em relação à conservação da biodiversidade. Porquê?
Diferentes culturas no planeta têm abordagens diferentes. A natureza no Mediterrâneo é muito agreste e trabalhosa e vista como algo utilitário. Já na Índia, onde há mais misticismo em relação à natureza, é muito o local onde estão os deuses. A natureza é por isso reverenciada.

Portugal e Espanha têm o hotspot da biodiversidade na Europa, mas os nórdicos são muito mais dados à contemplação da natureza e à observação de aves.
Não creio que os nórdicos sejam mais biofílicos do que nós. Eles têm uma consciência ambiental que já vem de trás. Culturalmente, gostam muito de ir para o campo, para a wilderness. Mas, por outro lado, são completamente avessos a grandes mamíferos, como os lobos ou ursos. Gostam deles, mas ao longe. Na Alemanha mataram há uns tempos um urso vindo de Itália e na Noruega mataram há cerca de um ano vários lobos. A sua forma de encarar a biodiversidade é diferente da nossa, mas não quer dizer que seja linearmente melhor.

Pensa passar a reforma em Portugal?
Estou uma semana por mês em Portugal e tenho desejo de passar mais tempo.

Vai continuar a dedicar-se à ciência ou vê-se a fazer política?
A política em termos de politics não me interessa. Mas a policy já me parece mais interessante, no sentido de implementar políticas e não de fazer política. Quando se deixa de estar no auge da criatividade, somos mais sábios e podemos fazer outras coisas. É importante ajudar ou influenciar a implementar as ideias em que andámos a trabalhar ao longo de toda uma vida.