Sociedade

Em nome do Bispo

5 maio 2018 15:00

5 maio 2018 15:00

Se tomar o bispo pode ser importante, mesmo se não se trata de uma das peças decisivas do xadrez, já a colagem ao bispo, ou à simbologia inerente ao pastor da igreja católica, revela-se por vezes decisiva e tem sido persistente no tabuleiro do xadrez político português.

A tentação do poder para se associar à imagem do presbítero, com tudo quanto possa representar de ligações nem sempre claras entre a política e uma confissão religiosa, tem desencadeado, ao longo dos tempos, episódios nem sempre edificantes para quem faz do exercício do poder uma forma de satisfazer idiossincrasias pessoais.

Os presidentes das Câmaras Municipais do Porto e de Vila Nova de Gaia decidiram construir uma nova ponte entre as duas cidades. O objetivo anunciado é descongestionar o sobrecarregado tabuleiro inferior ponte de Luís I e, se tudo correr bem, permitir criar novas centralidades, em particular do lado de Gaia.

Os tabuleiros superior e inferior da ponte Luís I estão cada vez mais congestionados

Os tabuleiros superior e inferior da ponte Luís I estão cada vez mais congestionados

foto rui duarte silva

Não se sabe se existem estudos que fundamentem a opção tomada, embora se conheça já a vontade dos dois autarcas de dispensarem qualquer apoio do Estado.

Não há ainda projeto, mas foi já estimado um custo de doze milhões de euros. É uma previsão arriscada, em particular quando tudo está ainda dependente de um concurso internacional a lançar.

Na pressa de divulgar a medida como um passo sem recuo, Rui Moreira e Eduardo Vítor fizeram questão de anunciar desde logo a designação escolhida para a nova travessia do Douro, cuja conclusão, na hipótese mais benévola, demorará três anos. Será batizada - aqui, batismo entendido como expressão fundamental da vida cristã, não será apenas uma figura de estilo - com o nome do ex-bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, subitamente falecido em setembro do ano passado.

É uma decisão motivadora de várias perplexidades. A primeira vai direta a uma questão central e, porventura, uma das que desde logo se impõem: pode um Estado constitucionalmente laico utilizar nomes de personalidades ligadas a confissões religiosas para designar equipamentos públicos?

A resposta é pacífica e não suscitará grande debate. Pode e deve, desde que os escolhidos se tenham imposto pela sua capacidade de influenciar as dinâmicas da sociedade, ou tenham prestado relevantes serviços reconhecidos pela comunidade.

Sem minimizar o que possam ter sido as qualidades pessoais, religiosas ou até intelectuais de D. António Francisco dos Santos, o seu múnus pastoral de apenas três anos à frente da diocese do Porto, ou a sua presença e influência na região foi demasiado efémera para com razoabilidade se poder concluir que possa ter deixado uma marca capaz de ultrapassar os muros da mundividência católica.

Não será muito arriscado prever que um rápido inquérito entre cidadãos do Porto e Gaia iria revelar uma generalizada incapacidade de identificar, pelo nome, o ex-bispo do Porto, escolhido para nomear a nova ponte.

O nome de D. António Francisco dos Santos para designar a nova ponte suscita reservas

O nome de D. António Francisco dos Santos para designar a nova ponte suscita reservas

foto filipe paiva/visão

Até no universo católico têm surgido reservas quanto à escolha. O eurodeputado do PSD Paulo Rangel, um homem muito identificado e conhecedor das vivências da igreja católica, escreveu no jornal Público um artigo com o sugestivo título “Bispo, ponte e nome: uma sugestão tímida e amiga”. Sem questionar “o último e muito querido bispo do Porto”, Rangel, depois de frisar a importância histórica dos bispos no desenvolvimento e consolidação da cidade desde a Baixa Idade Média, não resiste a chamar a atenção para a importância de outros bispos, “cujo relevo na vida local, regional e nacional – até internacional – foi muito visível”.

Como não podia deixar de ser, o seu primeiro pensamento, como o de qualquer cidadão português minimamente informado, vai para D. António Ferreira Gomes, aquele a que por antonomásia se chama “o Bispo do Porto”.

Personalidade com uma profunda dimensão filosófica e intelectual, exerceu um combate pela liberdade que, não obstante o esforço por se manter nos estritos limites da defesa da doutrina cristã, o levou muito para lá do universo religioso.

A chamada “Carta a Salazar” é disso um exemplo paradigmático, ao ponto de o ter forçado a um exílio de uma década. Regressa à diocese apenas em 1969 e prossegue o seu muito particular combate, mesmo depois do 25 de abril de 1974.

D. António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto

D. António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto

foto arquivo a capital

Rui Moreira e Eduardo Vítor desperdiçaram uma excelente oportunidade de homenagear um grande vulto da cultura, da política e da religião. Levados pela emoção de uma morte recente, ou tão só para satisfazer uma qualquer obstinação pessoal, optaram por um nome longo e pouco ou nada enraizado no imaginário popular. Como as reuniões preparatórias foram quase sempre a dois, não é muito relevante saber de quem partiu a ideia, embora não seja difícil imaginar.

O mais importante é constatar que ambos concordaram com a sugestão feita e, com tantos anos pela frente, não terão equacionado a possibilidade de desafiar as comunidades locais a envolverem-se na escolha através de um processo participativo do qual todos beneficiariam.

Não conheci o suficiente D. António Francisco dos Santos para poder supor qual pudesse ser a sua reação a esta decisão. Quero, porém, acreditar que também ele, na sua sabedoria, e na simplicidade da sua vivência cristã, embora não o verbalizasse, porventura não deixaria de pensar como por vezes há quem se interesse mais por algo do que o próprio interessado. Seria a sua subtil forma de evitar dizer de alguém que estará a ser mais papista do que o papa.