Sociedade

O nome do pai

26 setembro 2017 20:49

universal history archive/uig/getty

Como é chamar-se Himmler, Göring ou Höss? O que se faz quando um pai, um tio ou um avô foi um assassino nazi? Relato de cinco descendentes que carregam o fardo da sua linhagem. No dia em que a jornalista Luciana Leiderfarb foi distinguida com o prémio Gazeta de Imprensa, o Expresso republica o trabalho “O nome do pai”

26 setembro 2017 20:49

Os morangos não escolhem onde nascem. Se escolhessem, talvez a história de Rainer tivesse perdido alguma da sua ironia. E o jardim com piscina dos seus avós, tratado com zelo por 30 jardineiros, perdesse para os que ali passaram a infância parte do seu encanto. Os morangos cresciam livremente junto à sebe e eram arrancados e devorados pelos cinco irmãos da casa, num ritual diário em que a mãe lhes dirigia sempre o mesmo aviso: que lavassem os frutos com cuidado para remover qualquer vestígio de cinzas. Nenhum deles parecia importar-se com a enorme chaminé do forno crematório que, a escassos 200 metros, emoldurava o lado direito do jardim. Ou com a pacatez do cenário bucólico no qual acordavam todos os dias — conhecido por Auschwitz, a maior fábrica de morte da Alemanha nazi.

“Auschwitz é para mim o equivalente à casa dos meus avós”, diz Rainer Höss. Já lá esteve 28 vezes, com estudantes e amigos ou para participar nas comemorações do campo. E sente sempre a mesma coisa, o mesmo arrepio inconsolável. Desenvolveu comportamentos repetitivos, como começar a visita pelo mesmo sítio — a forca, onde o brutal comandante Rudolf Höss, seu avô, morreu em 1947 após o julgamento em Nuremberga. Ou como não tocar em absolutamente nada, nem sequer para abrir uma porta. “Se estiver frente a um dos blocos, espero que alguém saia para entrar. Não quero ter nenhuma ligação com o meu avô. Os seus crimes estão inscritos em todas as paredes.”

Como os morangos, Rainer não escolheu a família onde nasceu. Nem Rainer nem outros descendentes da elite nazi. Portadores de apelidos que de imediato relacionamos com o horror, a deles é a história de uma herança sinistra e silenciada. Sobreviveram ao seu nome sabendo que tal não é comparável a sobreviver a um campo de extermínio. E essa diferença radical determinou com frequência os seus percursos. Não é por acaso que Katrin Himmler estudou ciência política e se casou com um judeu, que Niklas Frank leva no casaco a fotografia do pai morto, que Bettina Göring decidiu esterilizar-se, que Rainer Höss se tornou ativista a tempo inteiro contra a extrema-direita, e que Horst von Wächter definiu como missão de vida limpar o nome do pai. O Expresso falou com eles, reconstruindo as suas histórias.

Rainer Höss cresceu a pensar no avô Rudolf como herói de guerra e soldado exemplar. Quem primeiro lhe passou esta imagem foi a avó Hedwig, para quem o marido se limitou a obedecer a ordens — ainda que comandasse a vida dentro do campo e fosse responsável pela construção de Birkenau, que decidisse o ritmo dos gaseamentos, que selecionasse quem viveria e quem não, e quem passaria a ser um dos 50 construtores judeus da sua própria villa com piscina. “Ela perdeu o paraíso em Auschwitz, e a pergunta assustadora é: se aos olhos da minha avó aquilo era o paraíso, como seria o inferno para ela?” A infância de Rainer foi dominada por esta mulher “fria e agressiva”, que em nada fazia lembrar uma avó. Que era incapaz de cozinhar — “tudo o que cozinhava era hediondo” — e que em 1984, na última vez que se viram, disse ao único neto que teria sido melhor se a mãe o tivesse abortado.

Até se suicidar em 1989, Hedwig negou que Auschwitz fosse um campo de extermínio, embora o forno crematório fosse visível do seu jardim. Teve cinco filhos e o quarto, Hans-Jurgen, pai de Rainer, tornou-se um pai abusivo. Batia no filho e na mulher, que tentou acabar com a vida numa dezena de ocasiões e só soube a origem familiar do marido três anos depois de se casarem. Quanto a Rainer, percebeu cedo qual era o seu lugar. Aos dez anos, pediu autorização ao pai para participar num jantar de Pesaj [Páscoa judia] a convite do melhor amigo. “Fiz o ritual de sempre: pus-me à frente dele, com as mãos atrás das costas, à espera de poder falar. Quando o fiz, ele saltou da cadeira, partiu-me o nariz e trancou-me no quarto. Eu não fazia ideia do que tinha acontecido, mas era normal e não pensei no assunto. À noite ele apareceu ainda furioso e disse-me: ‘não tens permissão para falar com lixo judeu’.”

 EM cima, Rainer Höss, neto de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz. Em baixo, o casal Höss com os filhos (o rapaz mais novo junto a Rudolf Höss é o pai de Rainer); e a villa da família em pleno campo de concentração, de onde se vê o forno crematório

EM cima, Rainer Höss, neto de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz. Em baixo, o casal Höss com os filhos (o rapaz mais novo junto a Rudolf Höss é o pai de Rainer); e a villa da família em pleno campo de concentração, de onde se vê o forno crematório

d.r.

arquivo rainer höss

Dois anos depois, já a viver num colégio interno, um professor apercebeu-se da cegueira na qual estava a ser criado e levou-o a Dachau, onde o avô tinha trabalhado antes da guerra. Era a primeira vez que tomava contacto com um campo de concentração — “na minha juventude não era comum falar-se da II Guerra Mundial”. Ficou surpreendido ao encontrar uma placa com o seu apelido, o que o levou a questionar o pai sobre o assunto. A explicação que recebeu foi um amontoado de mentiras: onde se lia Höss devia ler-se Hess, tratava-se de um engano lamentável, ele até escrevera uma carta a reclamar. Passado algum tempo, viu na estante um livro sobre o comandante Höss que continha o mesmo ‘erro’. “As crianças acreditam no que os pais dizem. Pensei: meu Deus, escreveram de novo mal o nome! Tirei-o para verificar isso e o meu pai saiu disparado do escritório, agarrou-me na mão e proibiu-me de o ler.”

Mas Rainer leu o livro — intitulado “Eu, Comandante de Auschwitz”, nada menos do que a autobiografia escrita por Rudolf Höss na cadeia. Devorou-o em poucos dias aproveitando uma viagem de negócios do pai. No final, soube com uma certeza irrevogável que devia sair de casa. “Era a única hipótese para mim, a única possibilidade. Sei que neste contexto é horrível de se dizer, mas eu sobrevivi a esta família”, desabafa Rainer, de 51 anos. Mudou-se para o colégio onde já começara o treino como cozinheiro, andou ano e meio revoltado e submerso em drogas e álcool, até outro professor lhe estender a mão. O seu “mentor”, como gosta de lhe chamar — também produto da loucura nazi, nascido num Lebensborn, casas onde se promovia a fecundação de bebés de perfil ‘ariano’ —, que o ajudou “a sair desse ciclo” e a começar a consultar arquivos para perceber melhor o significado do seu nome.

DO ÓDIO À COMPAIXÃO

Fugir foi também o caminho que Bettina Göring escolheu aos 13 anos. A sobrinha-neta de Hermann Göring não suportou as consequências de viver na família do fundador da Gestapo, a quem Hitler nomeou seu sucessor. O homem que, após a morte prematura do irmão mais velho, tomou conta do pai de Bettina e era por ele adorado e admirado. “Hermann tornou-se um pai para o meu pai e um padrinho que tomava conta de todos, os enchia de presentes, os convidava para o seu castelo e lhes resolvia todos os problemas”, afiança. Mas o pior, o que desencadeou a rebelião sem retorno foi o facto de a avó paterna se mudar lá para casa e de insistir em negar o Holocausto. Um dia, a televisão emitiu um documentário sobre o tema e a avó, ex-dirigente da Cruz Vermelha que participara no embelezamento do campo de Theresiendstadt para estrangeiro ver, apressou-se a afirmar que era tudo mentira. Bettina e o irmão ficaram chocados, ingressando num longo túnel de perguntas até então não respondidas.

Reparação. Bettina Göring (em cima) forçou-se a deixar de odiar. Em baixo, pormenor de um álbum com a fotografia dos três sobrinhos de Hermann Göring. O rapaz à esquerda na foto é Heinz, pai de Bettina, que “adorava” o tio Hermann

Reparação. Bettina Göring (em cima) forçou-se a deixar de odiar. Em baixo, pormenor de um álbum com a fotografia dos três sobrinhos de Hermann Göring. O rapaz à esquerda na foto é Heinz, pai de Bettina, que “adorava” o tio Hermann

d.r.

arquivo de bettina göring

Aos 13 anos, Bettina não estava em condições de perceber o que hoje lhe parece evidente: que sendo Göring, o pai Heinz e o avô Karl “não tiveram grande escolha” a não ser aceitar um destino militar. “Tive uma grande discussão com o meu pai, em que o acusei de pertencer a esta família e de nunca ter feito nada certo. Ele ficou mesmo zangado e, se nunca antes me tinha batido, fê-lo pela primeira vez. E eu devolvi o gesto. Havia tanta coisa não dita, tanta coisa explosiva, que não consegui aguentar.” Saiu de casa, foi viver para a comunidade de Osho, na Índia, e depois passou vinte anos anos em Santa Fé, no Novo México — sempre a lutar contra o seu apelido, “um fardo que gostava de não ter de carregar”. A dada altura, decidiu que o lugar do ódio tinha de ser ocupado por “alguma compaixão” e forçou-se a olhar para a família de outro modo. Deixou de acusar o pai de perpetrador: “Ele era demasiado jovem para isso.” Quanto a Hermann, mantém que era “um psicopata obcecado pelo poder e a riqueza”. E ficou estarrecida ao saber que o tio-avô tinha apoiado sem reservas a “Solução Final”.

Teve essa revelação em 2008, enquanto participava no documentário “Bloodlines”. Nele, fala-se da sua amizade com Ruth Rich, uma judia alemã cujos pais polacos sobreviveram à guerra, e da forma como cada uma embateu contra a herança da outra. Foi também durante esse processo que Bettina compreendeu melhor a opção por se esterilizar, que fizera aos 30 anos. Percebeu que a falta de vontade de ter filhos afinal não estava desligada da pertença a uma linhagem que “quis cortar”. Ela, que pratica a medicina alternativa, que recentemente trocou Santa Fé pela Tailândia, e que se parece fisicamente com o seu tio-avô Göring, é hoje uma mulher apaziguada. Uma mulher de quase 60 anos para quem a sua missão é “falar”, contar a sua história, contá-la para que o mundo não esqueça.

CONTRARIAR A HERANÇA

Para Katrin Himmler, o mais difícil foi contar a sua história ao próprio filho. Fruto do casamento — entretanto acabado — com um judeu cuja família escapou da Polónia nos anos 30 refugiando-se no que hoje é Israel, o rapaz teria sido exterminado sem escrúpulo pelo tio-avô da mãe, Heinrich Himmler. O Reichführer das SS de 1929 até ao fim da guerra, ideólogo dos Einsatzgruppen [esquadrões de morte] e o homem por trás dos campos de extermínio era um profundo antissemita e a sua afinidade com Hitler muito mais do que política ou de cariz oportunista. Katrin não contou ao filho de 16 anos tudo de uma vez, mas nunca fez segredo acerca do passado. “Não foi tão duro como imaginara. Eu estava a fazer o ‘trabalho sujo’, a pesquisar os segredos familiares. E agora que estão escritos já não há lugar para a especulação. Por outras palavras, aquele era um problema meu, que resolvi, nunca foi um problema dele. E ele pode ir atrás dos seus próprios interesses.”

Investigar. Este foi o destino de Katrin Himmler, sobrinha-neta de Heinrich Himmler, que se casou com um judeu e hoje vive em Berlim

Investigar. Este foi o destino de Katrin Himmler, sobrinha-neta de Heinrich Himmler, que se casou com um judeu e hoje vive em Berlim

d.r.

Investigar foi sempre o caminho de Katrin Himmler, de 49 anos, que na juventude temia que as pessoas reconhecessem o seu nome — o que raras vezes aconteceu. Após um curso de fisioterapia, alterou o rumo doutorando-se em ciência política na Universidade Livre de Berlim. Porque se a família nunca escondeu quem era o tio Heinrich, outros eram os dados enterrados. Por exemplo, a filiação do seu próprio avô Ernst no partido nacional-socialista e nas SS, e com ele a de outros membros do clã Himmler, que descobriu ao indagar nos arquivos federais a pedido do pai. Tais revelações levaram-na a escrever, em 2005, o livro “The Himmler Brothers”, primeiro resultado de uma pesquisa que se prolonga até hoje. Mas a surpresa de ter um avô abertamente nazi não se compara ao embaraço que lhe provocou desvendar a afinidade da avó com aquele ideário. Katrin amava essa avó, que morreu ainda ela era adolescente. “Temos a imagem de que as mulheres não tinham poder dentro do partido e que só os homens eram passíveis de culpa. E este foi o argumento delas depois de 1945: sempre disseram, e toda a gente acreditou, que eram donas de casa a tomar conta dos filhos. Mas isto não é verdade. A minha avó não era membro do partido mas votou a favor e lucrou imenso com isso. E no pós-guerra manteve contacto com ex-criminosos nazis.”

Os Himmler nunca perdoaram a Katrin por estender a sua investigação além da figura de Heinrich, em quem depositavam toda a responsabilidade. Queriam manter a ilusão, diz ela, de que o resto da família estava “limpa” de nazismo. Por razões diferentes, Gudrun, a própria filha de Himmler, ativista de extrema-direita que em 1952 ajudou a erguer a Wiking-Jugend [sucedânea da Juventude Hitleriana], deixou de lhe falar. E não o fará tão cedo. Há dois anos, Katrin publicou “Correspondência de Heinrich Himmler” (acabado de traduzir pela Bertrand), com as cartas que o nazi escreveu à mulher desde 1927. Nas entrelinhas de assuntos quotidianos e banais, como a descrição de uma paisagem com uma “vista magnífica” ou a preocupação pela saúde intestinal de Madga, estas vão dando conta de uma guerra com “vitórias admiráveis”. Deixam entrever que ele era muito mais próximo de Hitler do que se pensava e que empreenderam longas e produtivas viagens juntos.

O contrário aconteceu a Hans Frank. Chegou a ser advogado pessoal de Hitler e mais tarde governador-geral da Polónia ocupada, mas nunca fez parte do seu círculo íntimo. “Hitler colocou-o nessa posição porque conhecia a sua lealdade canina e sabia que jamais seria um obstáculo aos seus planos na Polónia. Na verdade, Hitler desprezava-o”, diz Niklas Frank, de 77 anos,filho mais novo do dirigente nazi e o único dos entrevistados com quem o Expresso falou pessoalmente, em Lisboa, no passado mês de março, no âmbito do Festival Judaica. Niklas nasceu em 1939, o ano em que o pai foi destacado para a Polónia, e cresceu com os cinco irmãos entre o Castelo de Wawel, em Cracóvia, e a residência familiar na Baviera. “Desde cedo soube que era filho de um homem muito poderoso e que podia fazer o que quisesse. Com o meu pequeno cat car, acelerava e batia nas pernas dos crescidos. E eles não podiam apanhar-me porque eu era o príncipe do castelo.”

UMA PALAVRA QUE NÃO EXISTE

Das suas memórias faz parte uma ida ao gueto de Cracóvia, onde a mãe costumava comprar artigos como algodão, sedas “e coisas caras”. Ela própria fixava os preços e os judeus aceitavam por acharem que podiam ser salvos. Niklas observava a cena da janela do carro, e a dado momento deitou a língua de fora a um rapaz. “Era mais velho do que eu e foi-se embora tristemente, e eu senti-me triunfante. Dei uma grande gargalhada mas a minha ama, Ilde, mandou-me calar.” Noutra ocasião, lembra-se de ser por ela levado a um campo de concentração e de aí haver um burro a saltar desgovernado. E de se rir muito com a cena, enquanto Ilde se divertia junto a um dos guardas, malgrado a multidão em condições degradantes que se divisava ao longe. Recordações como esta ainda lhe doem, mas ‘dor’ talvez não seja o sentimento que acompanhou Niklas ao longo da vida. O termo exato nem sequer existe, é algo que está “no meio de duas palavras: vergonha e culpa”. “Não há um dia em que não pense nas vítimas. Toda a minha vida tem sido assim.”

O grau de submissão do pai ao Führer ainda o assombra. Em 1942, Hans Frank apaixonou-se por uma amiga de infância e pediu à mãe de Niklas o divórcio, que não só lho negou como escreveu uma carta a Hitler solicitando sua intervenção. Hitler assim fez, proibindo-o de se divorciar até ao fim da guerra. “E o meu pai obedeceu. Podia ter dito que não ou tentado explicar a sua posição, mas era um cobarde.” Era igualmente um “mentiroso compulsivo” e o filho jamais perdoaria que ainda o fosse na última tarde em que se encontraram. “Eu tinha sete anos, sabia o que estava a acontecer em Nuremberga. A minha mãe tinha o rádio sempre ligado e o próprio advogado do pai tinha vindo a casa dizer que seria executado, que as provas eram avassaladoras. A ultima vez que o vi, eu estava sentado ao colo da minha mãe e ele atrás da janela da prisão, com soldados a rodeá-lo. E em vez de se despedir de mim disse: ‘Nikki, daqui a pouco vamos festejar o Natal em casa.’ Foi a minha última desilusão.”

Silência. Niklas Frank, em cima, contrariou-o sempre e escreveu três livros, todos sobre a herança do pai. Em baixo (à esquerda), em criança com os pais. Em baixo (à direita), Hans Frank a participar numa reunião com Hitler

Silência. Niklas Frank, em cima, contrariou-o sempre e escreveu três livros, todos sobre a herança do pai. Em baixo (à esquerda), em criança com os pais. Em baixo (à direita), Hans Frank a participar numa reunião com Hitler

antónio pedro ferreira

arquivo de niklas frank

Niklas estudou direito, literatura alemã, sociologia, mas acabou por ser jornalista. Trabalhou 22 anos para a revista “Stern” e foi repórter de guerra durante mais dez. “Tive uma vida feliz e divertida, nunca deixei que o meu pai a estragasse. E sou o avô mais ridículo que se possa imaginar”, diz. Porém, no bolso de um dos casacos guarda sempre a foto do pai recém-enforcado, deitado sobre um lençol. Pormenor que pode parecer macabro a quem desconhece a sua ironia agreste e a tendência para o humor negro. Leva essa foto para se lembrar de que está mesmo morto e porque o pai, que só superficialmente confessou arrependimento em Nuremberga, parece estar a sorrir. “Agora deve estar a sorrir imenso com a subida da direita na Alemanha”, remata.

No extremo oposto de todos os exemplos aqui descritos está o de Horst von Wächter. Niklas conhece-o bem — filmaram juntos o documentário “What Our Fathers Did: A Nazi Legacy”, realizado por David Evans em 2015, onde também participa o advogado de direitos humanos Philippe Sands. Quarto dos seis filhos de Otto Wächter, Horst quase não teve contacto com o pai, em 1939 nomeado governador do distrito de Cracóvia e em 1942 da Galícia ucraniana, sob a alçada de Hans Frank. No filme, vemos Niklas repudiar a herança paterna enquanto Horst a engrandece, vendo no pai um herói, um ‘bom nazi’ que não era antissemita nem teve nada que ver com a expulsão de 68 mil judeus de Cracóvia ou com o assassínio de milhares de judeus ucranianos na floresta próxima de Lwiw.

Conseguir o depoimento de Horst, hoje com 77 anos, foi tarefa de meses. Finalmente, aceitou receber uma lista de perguntas do Expresso, cujas respostas mostraram em pleno as suas contradições. Admitiu ter sido criado como uma criança nazi “que enfrentou a derrota”. Contou que passou a maior parte da guerra numa casa da Áustria rural, junto ao lago Zell, onde dava “caminhadas pacíficas” a despeito das bombas dos aliados. Que o fim da guerra significou para ele a perda do lar. Para defender o pai, Horst faz questão de distinguir os dois sistemas de governo estabelecidos por Hitler, o civil e o policial, afirmando que Otto só fazia parte do primeiro — não obstante pertencer às SS. Era sobretudo responsável “pelas áreas da habitação e do trabalho, e não pelo extermínio dos judeus”. Himmler convidou-o a trocar a Ucrânia por Viena mas não aceitou “porque jamais teria abandonado esse povo para salvar a própria pele”. Simon Wiesenthal, que atestou tê-lo visto na estação de comboios de Lwiw a prender judeus, “na realidade confundiu-o com Fritz Kratzmann, que usava o mesmo uniforme”. Se não tivesse fugido para o Vaticano — onde morreu em 1949 — Otto nunca teria tido um julgamento justo. “Teria sido entregue a Estaline à espera, no melhor dos casos, de um julgamento-espetáculo em Lwiw ou mesmo em Moscovo”.

Horst define-se como inseguro e instável, e diz que só encontrou sossego ao trabalhar como assistente do artista austríaco — e judeu — Hundertwasser. Depois, fez da limpeza do nome do pai um objetivo de vida, para o qual afirma ter coligido vários documentos que provam a sua inocência, os mais cabais encontrados recentemente nos arquivos do Vaticano, em Roma, pela historiadora polaca Magdalena Ogórek: “Como filho, tenho o dever de retificar as coisas.” A isto somou a “obsessão” pelo estudo das Sagradas Escrituras hebraicas e a escolha de uma existência isolada no castelo que habita junto da mulher — “cuja estrutura reproduz os princípios do Templo de Salomão em Jerusalém”. O devaneio do seu discurso ancora-se, porém, num raciocínio de forte substrato ideológico: “Tudo o que diz respeito à II Guerra Mundial se tornou cada vez mais abusivo e afinal parece que cada austríaco vivo tem pelo menos um antepassado criminoso. Isto tem vindo a ser rejeitado como falso pela maioria da população.”

A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO

A questão da herança nazi está longe de ser pacífica ou linear. É um chão escorregadio que nem todos querem pisar, com medo de derrapar para sempre no poço sem fundo onde Rainer, Niklas, Bettina e Katrin aprenderam a viver. É uma “conspiração do silêncio”, como a jornalista Alexandra Senfft, ela própria neta do nazi Hanns Ludin, explicou ao Expresso. A escrever sobre esta temática há mais de uma década, para ela a atenção nos descendentes da elite nazi “concentra a responsabilidade nos decisores em vez de analisar a atitude geral das pessoas comuns e perceber porque se tornaram fanáticas ou assassinas”. Muitos líderes nazis, sublinha, voltaram aos seus empregos, calando o seu envolvimento no Holocausto. “A sociedade tolerou-os porque a maioria tinha alguma coisa a esconder e da qual se sentir envergonhada ou culpada. Não houve qualquer conversa sobre o passado e, se houve, a guerra foi descrita de forma a que os alemães fossem vistos como vítimas — que também foram — e não como perpetradores.” Nos anos 60, as tentativas de os jovens quebrarem o silêncio não produziram efeito, “porque de novo os pais se sentiram acusados, defendendo-se com o silêncio ou a negação”.

Vir a público com a própria história é, para Alexandra, “um ato político”. Um ato que, nos anos 80, o psicólogo israelita Dan Bar-On teve de forçar na sua procura de testemunhos para o livro “Legacy of Silence”, pioneiro no assunto. Na introdução à edição de 2003, Bar-On relatou a sua chegada à Alemanha e a sensação de “não haver léxico para nomear esse passado”, tratado como um segredo temido e temível que mais valia não perturbar. Katrin Himmler acrescenta ainda a diferença abissal entre a atitude coletiva e a privada do povo alemão no que toca à II Guerra: “A Alemanha lidou com o seu passado furiosamente. Temos memoriais por toda a parte — eu vivo em Berlim e não posso avançar dois passos sem tropeçar num. As pessoas sabem muito sobre a época nazi mas não fazem ideia de como lidar com ela dentro das suas casas.” Mesmo quando o tema deixa de ser tabu, “ouvem-se as histórias dos bombardeamentos, em que as pessoas perderam tudo ou tiveram de fugir. Não se ouve falar de quem lucrou com o nazismo, de quem teve privilégios, ou se calou ou colaborou.”

Horst von Wächter quer limpar o nome do pai, Otto Wächter, que considera um ‘bom nazi’ e alvo de difamação histórica

Horst von Wächter quer limpar o nome do pai, Otto Wächter, que considera um ‘bom nazi’ e alvo de difamação histórica

foto sniezka

“Este é um dos grandes erros do povo alemão”, concorda Niklas. “A grande maioria dos alemães não teve pessoalmente nada que ver com as mortes, mas como alemães deveriam saber, ou querer saber, o que os pais, avós e bisavós fizeram.” Ele, que em 1987 escreveu “In the Shadow of the Reich” para quebrar esse ciclo, contou desde cedo à filha quem foi e o que fez o seu avô Hans Frank. Também Rainer Höss seguiu a mesma via. Os quatro filhos adultos tiveram acesso à pesquisa que ele iniciara aos 20 anos, e que nos últimos 15 se tornou o centro da sua atividade. Ser ativista antinazi e contra o extremismo a tempo inteiro foi uma decisão tomada a quente, no rescaldo de um ataque cardíaco, da qual não se arrependeu. “Senti que era um sinal para eu mudar alguma coisa e fazer algo que realmente me importasse”. Vendeu o seu negócio e hoje organiza atividades e debates em 60 a 80 escolas por ano.

Porquê? “Porque o meu nome é um legado cruel mas pode ser uma arma contra aquilo que um dia representou. Porque hoje há pessoas a serem discriminadas pela religião, pela cor da pele ou pela sexualidade, e uma extrema-direita em ascensão, e isso não podemos permitir. E por uma questão de respeito: tenho de fazer isto pelas pessoas que sofreram às mãos da minha família. É a única coisa que posso fazer enquanto neto do meu avô.” Por isso começou a contactar sobreviventes e se envolveu há um ano no julgamento de Oskar Groening, o contabilista de Auschwitz que acabou condenado a quatro anos de prisão. Rainer juntou-se aos advogados em busca de testemunhas e no caminho encontrou Eva Kor, uma judia romena deportada para Auschwitz que, com a sua irmã gémea, fora alvo das experiências médicas de Josef Mengele. Rainer escreveu-lhe e ela marcou um encontro na cafetaria do campo principal. Só acedeu a começar a conversa depois de o olhar demoradamente e de avaliar as suas intenções. Era apenas o preâmbulo da forte amizade que levou Eva a referir-se a Rainer Höss como o “neto adotivo” e a dizer: “Fiz o que o seu avô nunca pôde fazer, pu-lo do meu lado.” Pela sua parte, Rainer tatuou no peito o número de prisioneiro de Eva, para que ela viva até ao fim dos dias dele, e para nunca esquecer a sua tarefa de “espalhar todas estas histórias”. Provar que nenhum homem, como os morangos, escolhe onde nasce. Mas alguns podem escolher onde, porquê e como querem morrer.

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 13 agosto 2016