23 outubro 2022 20:32
João Paulo Martins desvenda semanalmente os bastidores do mundo dos vinhos
23 outubro 2022 20:32
Com muita frequência ouvimos dizer que somos um país muito rico em castas de uvas. É verdade mas não somos só nós. Todos os países da bacia do Mediterrâneo, indo até à Croácia e mesmo até à Arménia, se orgulham das suas castas autóctones. O nosso orgulho é maior porque somos um país pequeno e o número de castas é de tal maneira elevado (a rondar as 250) que faz de nós, atendendo à área, o país com maior número de castas próprias. Se há assunto onde durante décadas (ou mesmo séculos) reinou a total confusão foi o nome das castas e a sua sinonímia noutras regiões, ou mesmo noutros países. As castas, tal como os homens, viajam e foram passando de terra em terra. Foi assim, por exemplo, que as castas francesas ‘voaram’ até à América do Sul, à Austrália ou à África do Sul. Cá também chegaram algumas castas vindas de fora, que por aqui se deram bem e resolveram ficar. Esta história vem a propósito de um vinho que seleciono hoje, uma novidade acabada de ser apresentada, um Pinot Noir do Dão. A pergunta que salta de imediato é a seguinte: mas o que é que faz um Pinot Noir, casta emblemática da Borgonha, na região do Dão? E o que é que o Dão ganha com isso? Às duas questões pode-se responder: nada! No entanto, se escavarmos um bocadinho encontramos uma história que merece ser contada. A casta existe na quinta da Passarella há muitos, muitos anos, ainda que a vinha que deu origem a este vinho tenha sido plantada apenas em 2008. A maturação no Dão é lenta e este ano acabaram-se vindimas a 11 de outubro, mas a Pinot Noir é uma variedade muito precoce e era então usada para fazer um pé de cuba. Trata-se de uma prática muito antiga em que se fazia uma fermentação com muito pouca quantidade de uvas. Quando elas começavam a fermentar entrava-se em ‘estado de guerra’ entre as várias estirpes de leveduras que vinham com as uvas; as leveduras, muito longe de grande camaradagem, matam-se umas às outras e têm um killer factor que faz com que umas sobrevivam e outras não. O problema é que nunca sabemos se as que resistem mais são as boas ou as más. A moderna ciência, para ultrapassar isso, seleciona leveduras de boa qualidade que vão, assim, assegurar uma boa fermentação. Desta forma, usar leveduras selecionadas, longe de ser uma ‘traição à natureza’ é tão-só dar às uvas o que elas precisam de melhor para fazerem o seu trabalho. O pé de cuba juntava-se então ao restante mosto e o arranque da fermentação era mais fácil. Em homenagem a esses tempos antigos a Passarella reeditou o Pinot Noir com o cuidado de o fazer com algum engaço para que os aromas se afastassem do frutadinho de morangos e framboesas que, com frequência, surgem nos vinhos de Pinot Noir. O resultado é um Borgonha português? Não propriamente, mas é uma excelente tentativa de domesticar uma das castas mais fáceis e mais difíceis de trabalhar. Diga-se também que, na Borgonha, há muito, mas mesmo muito Pinot Noir que é pouco mais que vulgar e que só o nome da região faz com que seja procurado e bajulado. Esta primeira edição do Pinot da Passarella, a que se seguirão outras, é um belíssimo exemplar. Só isso já nos conforta. A outras castas estrangeiras voltaremos noutras crónicas.