15 outubro 2022 8:37

rui oliveira
O crítico João Paulo Martins revela-lhe tudo sobre o mundo dos vinhos
15 outubro 2022 8:37
Em cada vindima, seja ela boa ou apenas vulgar, surgem sempre vozes a apregoar o impensável: é a colheita do século! E quem disser o contrário, não só é burro, como não é bom português. É bom que se diga que este epíteto pode ser usado por quem assim o entender, não corresponde a qualquer classificação, seja ela oficial ou outra. Pode então perguntar-se o porquê da frequência com que uns quantos produtores se chegam à frente afirmando que “nunca viram nada assim” (Nota: esta frase tem direitos, foi durante muitos anos usada por Dirk Niepoort...). A razão é mais prosaica do que se poderia pensar: é preciso vender a colheita mais recente e, melhor que ninguém, é o próprio produtor o mais indicado para mentir à descarada. Diz-se, nas conversas da má-língua, que a seguir a pescadores e caçadores, os enólogos são quem mais mente; com um grande à vontade, com um enorme descaramento. Porquê? Porque o negócio fala mais alto e uma mentirita aqui, outra ali, não aleija ninguém e ajuda imenso ao balancete e à folha Excel. Não sei onde nasceu a ideia da “colheita do século”, mas não me admiraria que tivesse sido em Bordéus, região onde proliferam os mentirosos encartados: por lá só há duas classificações de colheita, Excecional e Muito Bom; até nos anos de m... eles conseguem ir buscar adjetivos simpáticos em que o vinho pior é mencionado como Un petit vin! Tenho presenciado amiúde esta cena triste de ver um produtor a clamar pelas virtudes da última colheita que, ah e tal o crítico(a) inglês(a) gostou muito e o crítico americano pôs nos best of e nas bargains e por aí fora. Nem sempre é óbvio que no momento da vindima se consiga captar de imediato que estamos perante uma colheita grandiosa. Por vezes há enganos: todos embarcaram na maravilha dos 2011 (por força da declaração de Porto vintage clássico) e, afinal, é provável que os DOC Douro 2012 se mostrem melhores e mais equilibrados. E mesmo nos anos de arromba do Vinho do Porto, de que o 1994 é o melhor exemplo, o tempo encarregou-se de mostrar que não eram todos excecionais (e isto sem falar das fracas declarações de 1975 e 1991...). É verdade que quanto mais diversa for a região (de exposição, altitude, por exemplo), mais possibilidades há de encontrarmos pequenas parcelas onde tudo correu bem quando, na maioria, tudo correu menos bem, ou mesmo mal, sobretudo se falarmos das doenças da vinha. Para os que gostam da frase “me mente que eu gosto!” os produtores e enólogos têm um largo repertório em carteira: técnicas ancestrais, intervenção mínima, nada de químicos, nada de leveduras químicas, nada animal, respeito pelo terroir. É só escolher. Os resultados nem sempre são famosos, mas a narrativa atrai uns quantos. A ideia da grande colheita em ano de pouca colheita é possível (como no ano de 88), mas não é regra. O vinho é e continuará a ser um negócio, já que é preciso pagar as contas. Isso não deve ser razão bastante para, ano após ano, surgir de novo a estafada conversa da qualidade ótima da colheita mais recente. Deixemos, portanto, as histórias da carochinha para os meninos. Colheita do século? Ora, ora...