Restaurantes

Boi-Cavalo: suspense em cada garfada

11 dezembro 2022 22:17

ana brigida

Como se de um guião de um thriller se tratasse, uma ida ao Boi-Cavalo não tem final previsível. O crítico Fortunato da Câmara dá o seu veredito sobre a carta do restaurante

11 dezembro 2022 22:17

Não foi propositado (asseguro), mas volvidas exatas 400 críticas de restaurantes regresso ao Boi-Cavalo para perceber como vive esta cozinha desafiante, depois de tantos mares, sóis e confinamentos passados. Foi a minha terceira crítica aqui nesta página, sendo esta agora a 403ª. A linha do chefe Hugo Brito mantém-se coerente com o estilo irreverente que apresenta desde a abertura de portas deste antigo talho na zona de Alfama. O espaço levou entretanto grandes melhoramentos na cozinha, mantendo-se a sala com as paredes de mármore de origem que não ajudam nada a acústica, sobretudo se houver grupos. A lista está mais estruturada do que antes — ainda que não assuma ‘entradas’ ou ‘principais’ — entre pratos ligeiros e outras mais proteicos. As combinações são imprevisíveis, como se estivéssemos a ler cenas de um guião e a tentar saber como vai acabar a história. O guionista é Hugo Brito, um cozinheiro sem aparente agenda ou imprensa que ande com ele ao colo. Os seus menus trazem sempre suspense às papilas, com ligações arriscadas de ingredientes que prometem cenas de thriller gastronómico.

Parece querer fazer tudo, como alguns cineastas de culto, o que é sempre um caminho para correr riscos, como se vê no couvert de “Broa de milho, manteiga de cultura, sambal” (€7), com o pão húmido e melado, muito bom, a ir bem com a manteiga fresca, quase sem sal, e um samba palatino do sambal, feito à séria com microcamarões secos a apurar longamente, como nas boas versões asiáticas, a preencher de sabor todos os recantos da boca. Se fosse uma personagem de guião, merecia um spin-off e ser vendido para fora. Depois os “Gnocchi parisienses, baunilha, moxama” (€16), que era uma massa choux cortada em pedacinhos e cozida, envolta num molho aveludado com notas abaunilhadas no limite de ser enjoativo, mas a ser contraditado pela salinidade da moxama tunídea ralada sobre o conjunto. A testar os nervos. Suavidade na “Gamba da costa curada, brás, sumo de couve” (€20), com o miolo do crustáceo quase cru, mas que podia estar mais firme e de sabor mais incisivo, com um molho inspirado na mescla (ovos, batata, cebola) do bacalhau à Brás, em que só fez contraponto o sabor verdeal do suco da couve em dose esparsa — faltou frisson nesta sequência. A mexer com os nervos a “Cavala, recado negro, funcho” (€16), com o pescado aberto em livro, a surgir com ar ‘mumificado’, só que não, pois estava barrado com um molho mexicano do Iucatán portentoso em cravinho e outras especiarias, ainda o funcho, e do lado interior as lascas rosadas da carne piscícola tépida. Nas “Couves de bruxelas, sikil pak, old bay” (€14) andou-se entre as folhas crocantes da brássica, um creme de sementes na base, notas de fumo e frutos secos. Sem referências e com muita irreverência.