Eles vão de Portugal até ao Catar em 50 dias. São 8 mil quilómetros à boleia
O grupo à saída de Kotor, no Montenegro
Três rapazes de Lisboa, e mais um que há de chegar, combinaram estar no estádio para ver o primeiro jogo de Portugal no Mundial. E querem chegar ao Catar com a ajuda de quem passa. Falta exatamente um mês para o apito inicial. É uma aventura de quase 8000 quilómetros, sempre de braço estendido e com um cartaz na mão, para conhecer num mapa interativo
Francisco estava à beira da estrada e tinha um pedaço de cartão na mão. Duarte e Bruno esperavam ali perto, sentados perto de uma estação de serviço na Segunda Circular, em Lisboa. Quem passava no sentido Norte-Sul naquele 6 de outubro, com o rádio a dar o sinal horário das nove da manhã, via o rapaz de punho cerrado e polegar erguido e lia o distante destino dos três jovens escrito a caneta de feltro: ‘Qatar’. Uma viagem de quase 8000 quilómetros, sempre à boleia, e na bagagem a vontade de chegar a tempo do primeiro jogo da seleção portuguesa no mundial. Faltam 50 dias.
Trinta minutos depois, surgiu a primeira boleia. Um jipe preto parou para abastecer e o condutor ajudou-os a escrever o primeiro capítulo. “A ideia inicialmente era visitar os países contra quem Portugal ia jogar na fase de grupos”, explica Francisco, o cérebro da operação. Mas Gana, Uruguai e Coreia do Sul acabaram por ser destinos dispendiosos, o que fez mudar o alinhamento da rota. “Queríamos interligar o mundial com o nosso projeto, o Andamente, e aí surgiu a ideia das boleias!”
O Andamente é um projeto com três anos e uma lista de sonhos, pensados por Francisco, que se dedica à edição de vídeo, e Daniel, engenheiro biomédico. Desta vez, juntam-se a eles Duarte, estudante de mestrado, e Bruno, gestor. Já o sonho, passa agora por promover as boleias como modo de deslocação. Francisco temalguma experiência, ainda que em menor escala quando comparado com a aventura em curso. Percorreu o país de Norte a Sul sempre à mercê da boa vontade dos que paravam na Estada Nacional 2 (EN2). Duarte também não é novato. Em 2019, desafiou-se a viajar, sozinho e nos mesmos moldes, da Roménia (Transilvânia) a Portugal (Lisboa). Já Bruno, conta com a perícia dos restantes.
Às costas, não têm espaço para levar a casa. Por isso é preciso fazer escolhas. “Cinco t-shirts, quatro camisolas de manga comprida, duas calças, um casaco, kit de emergência, material de vídeo e umas toalhitas com cheiro a melancia" é o bastante. Malas feitas, é “sempre com o mesmo par de sapatos” que seguem um caminho cujo roteiro “é muito à base da espontaneidade”.
De Lisboa, pararam em Torres Novas, Entroncamento e Abrantes, antes de chegarem à estação de serviço da Guarda, onde descansaram, ou tencionavam descansar, a primeira noite. "Só tínhamos uma tenda". Uma única tenda para três rapazes entre os 25 e os 26 anos, com uma altura média de um metro e oitenta. “Não recomendo de todo, mas são estas condições, que ao início parecem desconfortáveis, que acabam por fazer parte da viagem”, admite Francisco, “e é a partir do momento em que reconhecemos isso, que as coisas começam a correr melhor”.
O trio nem sempre recorre ao campismo. Fazem-no para facilitar a retoma do caminho na manhã seguinte, pernoitando perto da autoestrada. “Ao entrar nas cidades, ficamos muito limitados” por não haver “acessos pedonais até às vias rápidas”, o que não quer dizer que por vezes não aconteça. Aliás, encontrar alojamentos é essencial para tomar banho e garantir uma aparência cuidada – a principal receita para o sucesso de uma boleia.
“A primeira impressão conta muito” para ganhar a confiança de quem passa na estrada, ainda que ao contrário não tenha o mesmo peso. “É literalmente quem parar”, conta Francisco entre gargalhadas. "Quando estamos a tentar pedir boleia na rua e levantamos o dedo não sabemos quem é que vai aparecer. Cabe-nos assumir esse risco, não temos hipótese”. Duarte acrescenta, “já houve momentos em que achámos que o melhor era não apanhar aquela boleia”, mas “face à pressão” de terem os dias e quilómetros contados, nunca recusaram. Em contrapartida, confessa, “já nos enganámos totalmente face aos preconceitos que às vezes temos em relação a certo tipo de pessoas”.
À saída de Bolonha, conta Duarte, “houve um casal que acabou por se revelar nas pessoas mais genuínas e generosas que conhecemos nesta viagem. Desviaram-se do seu caminho; ofereceram-nos café; queriam oferecer-nos o almoço e ainda 20 euros para as despesas, o que obviamente recusámos”. “Estas pessoas deram-nos tudo o que tinham e o que não tinham para nos ajudar”.
O contacto com locais tem sido “uma das coisas mais recompensadoras”, mas o grupo receia que a sua chegada ao Irão condicione a forma como estão a levar a viagem. O país vive um período de crise, como não se via desde 2009, onde as manifestações são diárias e a tensão é constante. "Vamos ter de obedecer a regras que não estamos acostumados, e ter cuidado acrescido com potenciais situações de conflito”. Duarte antecipa ainda a possibilidade de, zelando pela sua segurança, se verem forçados a andar de transportes públicos.
A rota está traçada, e o objetivo de ir à boleia é inflexível. O que não significa que não existam imprevistos. Sucedeu há dias, quando foram de Nice ao Mónaco de comboio para um desafio: “driblar uma bola de futebol de um lado ao outro do país”. E conseguiram? “Só digo que a bola caiu para o mar Mediterrâneo a meio...". Regressaram de Uber a Nice e retomaram a viagem original. Nesta altura, começam a sentir “progressivamente mais dificuldade em passar a mensagem” que querem dada a barreira linguística.
Ainda assim, as formas de comunicar são várias. Em França, recorreram “ao francês básico” que aprenderam “no terceiro ciclo”. Já na Croácia, ao serem deixados num hotel à beira da estrada, onde tinham intenção de jantar tranquilamente, acabaram por ser convidados para uma despedida de solteiro com “uns 20 polícias locais”. “Acolheram-nos, ofereceram-nos cerveja” e ainda adicionaram “A Portuguesa” e “Minha Casinha” à playlist da festa.
Na passagem da fronteira com Montenegro, a espera foi alguma. “Podemos arranjar boleia no imediato ou esperar umas 6 horas, depende bastante”. Por serem três, desabafa Francisco, é difícil “encontrar uma pessoa que tenha condições para nos levar” o que fez com que, em algumas ocasiões, se vissem forçados a separar-se. Em breve, serão quatro.
Quem se junta é Daniel, 25 anos, que por motivos profissionais só poderá encontrar-se a meio caminho, algures na Turquia, onde já estarão Francisco, Duarte e Bruno com mais uma tenda para o acolher (Daniel também anda perto do metro e oitenta). O objetivo do ainda trio é chegar a Istambul dia 25 de outubro e, recorrendo ao couchsurfing, repousar por uns dias em casa de desconhecidos. Já fora da zona Schengen, antecipam, "a Turquia é um país que nos vai deixar um bocadinho mais desconfortáveis e achámos interessante fazer algumas aventuras lá pelo meio”
“Temos 50 dias para chegar ao Catar e muitas das nossas decisões são influenciadas sob esse propósito” reflete Francisco, ainda que deixe claro a sua posição. “Não estamos a promover que a organização do mundial seja lá”
“Temos 50 dias para chegar ao Catar e muitas das nossas decisões são influenciadas sob esse propósito” reflete Francisco, ainda que deixe claro a sua posição. “Não estamos a promover que a organização do mundial seja lá”. O que pretendem, ao invés, é colmatar a dicotomia entre aquilo que separa países e aquilo que é unido pelo futebol, apelando “à consciência de que este mundial também tem um lado positivo”. Desde que foi anunciada a organização do campeonato no Catar, muitas polémicas se têm levantado.
Desde corrupção e exploração laboral, a questões climatéricas, os três amigos não ficam indiferentes: “queremos ter um ato forte nessa parte”. Para tal, criaram uma conta no patreon, onde publicam conteúdo exclusivo e cujos fundos tencionam doar a uma ONG (organização não governamental) dedicada ao direito dos trabalhadores. Já para os gastos pessoais, contam com o apoio de três empresas, que ajudam a concretizar um desfecho feliz: assistir ao primeiro jogo de Portugal, que defronta o Gana, em Doha, no dia 24 de novembro. Bilhetes já têm, garantidos pela Federação Portuguesa de Futebol que reservou quatro lugares.
Ficam apenas em aberto três coisas: a quem vão delegar o pedaço de cartão com o destino final; se a última das três canetas de feltro preta que levaram terá ainda tinta para nela escrever “Doha”; e, claro, se chegam a tempo. Seja como for, a história está contada e percorre (literalmente) o mundo. Não fosse este “um projeto maior do que três rapazes aleatórios a pedir boleia no centro de Lisboa” só para desejar boa sorte a Cristiano Ronaldo, a quase 8000 quilómetros de casa. “Vamos fazer de tudo para que isso aconteça e vamos conseguir”
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