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Muito, pouco ou nada? Há cada vez mais restaurantes a pedir gorjeta na entrega da conta

Muito, pouco ou nada? Há cada vez mais restaurantes a pedir gorjeta na entrega da conta
Cristiano Salgado

Há gorjeta ou nem por isso? O pagamento de gratificações não é uma prática recente e continua a não ser obrigatório em Portugal. Mas há cada vez mais restaurantes a pedirem-no indiscretamente aos clientes. É culpa da inflação, ou serve de muleta para baixos salários?

Bebe-se a última gota de um café, habitualmente queimado, servido numa chávena escaldada depois da também última garfada na sobremesa de companhia doce. Está consumado o final da refeição. O que se segue é um movimento aéreo transversal em várias latitudes do globo. Nos filmes, não precisa de legenda. Na vida real, não precisa de idioma. É a linguagem gestual que todos sabem ler. Trancada a troca de olhares com o funcionário responsável pelo atendimento, cola-se o indicador ao polegar e ergue-se o braço, por norma o direito — mas é provável os canhotos discordarem —, e gesticula-se uma tentativa de escrita no ar sem caneta. Está na hora da conta — ou “continha”. O diminutivo serve-se bem no bom português, que nele procura abater nos números digitados antes do sinal de euro (€), sobretudo numa altura em que a inflação pesa sobre os alimentos.

De tal maneira que, se em 2018, o Eurostat estimava que cerca de 9,2% das despesas das famílias portuguesas foram para restaurantes (um gasto acima da média europeia), de acordo com um estudo da consultora NIQ (antiga Niel­sen), realizado em janeiro deste ano, 38% dos portugueses dizem ter comido menos vezes fora nos últimos três meses. O que coincide com a altura de um fecho abrupto de restaurantes — entre outubro e dezembro de 2022, fecharam, em média, 14 por dia. São dados da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), que registou um total de 1281 dissoluções de empresas no quarto trimestre desse ano — o que representa um aumento de 162% face ao período homólogo anterior.

A “continha” é pousada na mesa, dentro de uma também “caixinha”, em frente à pessoa que, por infortuna vontade, se sentou à cabeceira — pressupõe-se que a mesa não é redonda. Ao mesmo ritmo de abertura da caixa, começa o preenchimento de um formulário mental. O atendimento foi bom, ou o empregado de mesa ignorou sistematicamente os “desculpe” e “por favor” de dedo no ar? A comida estava agradável, ou a demora trouxe pratos frios? O ambiente alimentava a conversa entre os elementos da mesa ou, ao invés, distrações ao seu redor?

Rabiscam-se as cruzes no quadrado referente à primeira premissa de cada questão. O atendimento foi bom, a comida estava agradável e o ambiente também. Com um leve aceno com a cabeça, consente-se o que está detalhadamente numerado no pequeno papel chamado fatura, e segue-se o momento da derradeira pergunta: Dinheiro ou cartão? Sobre uma conta de €50, que se acrescente mais €2,5: a dita gorjeta. Uns simbólicos, mas simpáticos 5% sobre o total da refeição — em Portugal, a dar, é comum somente um arredondo para cima.

No final de cada mês, essa quantia de €2,5, multiplicada por todos os clientes que se predispuserem a copiar a gratificação, é por norma dividida por todos os funcionários daquele estabelecimento. Há quem tenda a discordar com a justiça por trás desse método — então o empregado simpático tem de dividir a gorjeta com aquele que passou o turno a trocar pedidos? Mas quem anda de mesa em mesa, pousa um prato cheio de trabalho de outras pessoas, invisíveis, que passam dia e noite atrás das portas que dão para a cozinha. E esses não merecem gratificação? Luís Trindade, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Hotelaria, Turismo, Restauração e Similares do Sul, responde: “Numa equipa é feita a divisão porque o serviço tem a contribuição dos colegas da cozinha e não só — falo também dos funcionários das copas.”

Quem dá o que tem, a mais pode ser obrigado

O pagamento de gratificações “não é uma prática recente no nosso país”, escreve Sofia Lima, especialista em assuntos jurídicos da Deco Proteste, ao Expresso. Por “nosso país” entenda-se Portugal, apesar de esta ser uma realidade transfronteiriça, e mais do que portuguesa é europeia. Em França, por exemplo, segundo a companhia de seguros Intermundial, a gorjeta já vem incluída na fatura, com um incremento de 15% sobre a conta. O mesmo acontece nos Países Baixos, na Chéquia (entre 10% a 15%) ou na Polónia (entre 5% a 10%). Mas até há bem pouco tempo não acontecia em Portugal.

Sofia Lima, da Deco, lembra que a gratificação “jamais poderá ser imposta pelo estabelecimento”

Sensivelmente desde agosto de 2022, há cada vez mais restaurantes a pedirem gorjeta aos clientes. Um pedido que, se antes era subtilmente feito num atendimento prestável, agora é através de coação direta e indiscreta. Na conta, passa a constar uma “sugestão” de gorjeta que pode ser adicionada — ou não — ao pagamento final. Ainda que a especialista da Deco reforce que tal gratificação “jamais poderá ser imposta pelo estabelecimento”, as bocas do mundo digital — que ainda não chegaram à organização de defesa do consumidor enquanto reclamação — têm vindo a questionar até que ponto o livre arbítrio do consumidor em mostrar o seu agrado, num conjunto de moedas ou notas deixadas para trás, pode estar a ser condicionado.

Até porque “jamais” não é linear. Ao mesmo tempo que Sofia Lima vai reforçando que as gratificações não são obrigatórias, que o seu pagamento é “voluntário” e que funcionam como “reconhecimento da qualidade da prestação de um serviço ou refeição”, também acrescenta que o cliente deve pagar determinada percentagem sobre aquilo que consumiu “se a mesma constar expressamente do preçário do restaurante”.

Uma liberdade imposta que, nas palavras de Luís Trindade, quando implementada, significa que “as empresas estão a agir contra os funcionários” por não existir uma “regulamentação para a divisão de gorjetas” — que sempre coube aos próprios trabalhadores fazer. Então, da conta, para quem, ou para onde vai a gratificação? Além de, quando declarada na fatura, incidir uma tributação autónoma à taxa de 10%, Sofia Lima esclarece que “compete à entidade patronal apurar os valores auferidos” e, posteriormente, distribuí-los. Voltando ao dirigente do sindicato, a versão é outra: “Dizem que é para valorizar a profissão, mas em vez de subir salários estão a usar os clientes para que tratem disso.” Por outras palavras, esta percentagem adicional, na sua opinião, pode estar a ser usada como muleta para pagar menos aos empregados.

Voando para oeste e aterrando nos Estados Unidos — um país inicialmente cético aos hábitos originários das tabernas da Europa, onde a gratificação era dada em troca da garantia de um serviço eficiente —, desde 1966 existe o “crédito gorjeta”. Trata-se de uma ferramenta legal que dá às entidades patronais o direito de pagarem aos funcionários um salário “submínimo”, contando que, com a gratificação, ultrapasse o limiar do salário mínimo — o que nem sempre acontece.

A OneFairWage, organização não governamental norte-americana sem fins lucrativos, atua precisamente contra esta medida, uma vez que, e segundo apurou, este tipo de práticas perpetua a desigualdade racial e de género: 50% de todas as mulheres e 58% das mulheres afrodescendentes não recebem gratificações suficientes para cumprir sequer o salário mínimo completo.

Movendo agora o peão para o continente asiático, a realidade é bem diferente. No Japão, por exemplo, dar gorjeta pode ser considerado ofensivo e pisa completamente fora dos limites da etiqueta. O motivo? Deixar uma gratificação é quase o mesmo que dizer que o serviço prestado foi surpreendentemente bom — algo que, no país, se parte do pressuposto que seja, não necessitando dessa caridade. Na China chegou mesmo a ser proibido, por indiciar um ato de suborno. Atualmente, continua a ser pouco comum e maioritariamente praticado por estrangeiros, sobretudo nas regiões de Hong Kong e Macau, onde se deixa 10% sobre a conta.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mortigaodelgado@gmail.com

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