Márcia Breia fala ao Expresso sobre a minissérie que chegou à Opto no mesmo dia das aparições de Nossa Senhora aos três pastorinhos. Esta sexta-feira, “Lúcia: A Guardiã do Segredo” fica disponível na íntegra na plataforma de streaming portuguesa. “Não sei se a Irmã Lúcia não foi obrigada a seguir aquele caminho”, questiona a atriz
Um. Dois. Três. A conta que Nossa Senhora de Fátima fez. Aconteceu algures na Cova da Iria, no centro de um Portugal à época “inculto, sem perspetivas, onde a religião era uma espécie de refúgio para as pessoas”. Assim o adjetiva a atriz Márcia Breia, protagonista do recente lançamento da Opto, plataforma de streaming da SIC. Não é católica, mas viu em “Lúcia: A Guardiã do Segredo” um grande desafio profissional, que abraçou pela vontade de fugir àquela que diz ser a “eterna história de ricos que casam com pobres e de pobres que casam com ricos”. Nesta minissérie, contada em apenas três episódios, transborda a riqueza de espírito num casamento com a fé.
Estreada a 13 de maio, o mesmo dia em que se celebram as Aparições de Fátima de 1917, a série narra, em português modesto, um milagre de língua comum numa altura em que pobreza e doença se misturavam, emaranhadas na conjuntura socioeconómica de uma República que aprendia a caminhar diante da Primeira Guerra Mundial. A dúvida e a incerteza imperavam naquele analfabetismo rural generalizado. Conforto havia apenas um. “Doença grave? Fé que se curem. Perde-se um filho? Fé para que não se sofra. Vai para a guerra? Fé que não morra”, reflete a atriz sobre essa mesma fé que não tem. “Para mim, não existe, não consigo ter”, conta. E o desafio passou exatamente por se desprender dessa inexistência, adotando uma nova visão que, apesar de “muito bonita”, classifica como “ingénua”.
Márcia Breia, a atriz portuguesa com quase 60 anos de carreira, não é católica, mas aceitou o desafio de dar vida à irmã Lúcia na nova minissérie da Opto
Uma ingenuidade de criança que pastoreava em campos calcados pelos pés daqueles que se eternizaram mundialmente na história da religião católica, como os três pastorinhos. Lúcia, Jacinta e Francisco alegaram ver Nossa Senhora — que apenas dialogou com a primeira. Entre saltos temporais, desenrola-se a vida — e a incrédula perspetiva de quem a olhava — daquela que, assim, se tornou a involuntária guardiã do segredo de Fátima.
Tinha apenas 10 anos, e o povo português servia-se em linhas de marionetas controladas pelo poder clerical, que encarava com ceticismo e crueldade as alegações. “Ninguém acreditava nela e acabou por ser muito maltratada”, continua Márcia Breia, que veste a pele a Lúcia dos Santos num outro tempo, com uma outra idade, quando a desconfiança já se havia metamorfoseado em admiração. Tudo porque, e apesar da negação que forçosamente lhe impunham, renegando-lhe o direito a puramente existir, nunca se demarcou de defender aquilo que vira ao lado dos primos.
“Não sei se a Irmã Lúcia não foi obrigada a seguir aquele caminho”
Quando, por fim, a Igreja legitimou o Milagre do Sol, colocando Portugal num eco que soa eterno no catolicismo, a irmã Lúcia deixou de ter vida sua e passou a viver para outros que dela socorriam força. “Não sei se não foi obrigada a seguir aquele caminho” questiona a atriz, sublinhando aquilo que os seus próprios olhos viram na personagem que, depois de acolhida pela Ordem do Carmelo, se entregou em pleno à fé — algo que a atriz diz poder apenas imaginar. “Tive de imaginar o que é uma pessoa com fé que tem de dar conselhos a outra que a busca para se sentirem bem”, conta.
Vindo de dentro, do Carmelo, a irmã Lúcia era vigiada por desviados sussurros provenientes das invejas que consigo habitavam. Vindo de fora, do mundo, era afogada em cartas de desesperada busca por amparo. Serviam-lhe de janela para um exterior que perdeu, ganhando então endereço no coração. “É infinitamente bom”, diz-lhe, a dada altura, a madre Rosário (Margarida Marinho), a superiora do Carmelo. “Também tenho os meus defeitos”, responde humildemente. Quais? “Acredito que os tenha”, reflete Márcia Breia, justificando: “Está sempre a pedir redenção, mas não diz de quê.”
Folheando entre as cartas às quais não consegue dar vazão, vê na nova carmelita uma oportunidade de mútuo auxílio. É Madalena Albuquerque (interpretada por Madalena Almeida) quem se desamarra do destino que o pai lhe desenhara. Preparada para fugir, acaba por cair na ilusão de um desamor que a leva ao Carmelo. “Recorreu ali para poder existir de outra maneira”, considera Márcia Breia sobre a personagem de contracena, com quem confessa ter gostado de trabalhar. A relação entre as duas, nas palavras da atriz, “não é carinho de folhetim”.
A protagonista encontrou nesta aposta de produção algo “diferente”, depois de quase 60 anos de uma carreira onde confessa haver sempre espaço para sonhar — não fosse a representação uma maneira de “não ter pesadelos”. Sobre a irmã Lúcia diz, entre risos: “Há quem me ache parecida com ela.”
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