Uma das coisas mais insidiosas de “Dead Ringers” (1988), o filme de David Cronenberg que por cá se chamou “Irmãos Inseparáveis”, com Jeremy Irons no duplo papel principal, era a maneira como os irmãos Elliot e Beverly Mantle, ambos médicos ginecologistas e igualíssimos dos pés aos cabelos, trocavam a seu bel prazer de pacientes e até de amantes sem que estes se dessem conta, nada ralados se com isso violavam códigos de ética, profissionais ou de outra natureza. O livro original de Bari Wood e Jack Geasland em que Cronenberg se baseava era inspirado, aliás, no caso verídico de dois ginecologistas gémeos da Nova Iorque de meados dos anos 70. A identidade tornava-se um segredo infernal e promíscuo, em sintonia com os comportamentos sociais daquela década.
Nos anos 80 em que o filme foi rodado, já tinha caído sobre a liberdade destravada dos seventies um manto de gelo. O panorama mudara radicalmente de figura com o advento da epidemia da sida. Mas isso não demoveu Cronenberg nem a frieza cínica da interpretação de Irons. E a história permanecia visceral, imoral, repulsiva, capaz de tocar em vários pontos sensíveis: filiação, narcisismo, incesto, fratricídio, mutação genética, etc. De politicamente correto, convenhamos, não tinha nada.
O novo “Dead Ringers”, versão 2023 em formato série por obra e graça de Alice Birch (estreou-se mundialmente no Canneseries, festival dedicado apenas a séries), surpreendeu imediatamente porque não é aquilo que se temia dela, isto é: não é uma versão light do filme de Cronenberg adaptada ao conforto dos sofás em que os novos fariseus das redes sociais se sentam. Elliot e Beverly continuam a responder por esses nomes — mas os manos agora são manas e quem dá a cara por elas é a britânica Rachel Weisz, num dos mais exigentes trabalhos da sua carreira. A sua nomeação para o Emmy é mais que provável.
A britânica Rachel Weisz dá cara e corpo às manas Elliot e Beverly, num dos mais exigentes trabalhos da sua carreira. A sua nomeação para o Emmy é mais que provável
Tal como no filme de Cronenberg, que era dotado de um finíssimo sentido de humor cortado ao bisturi (na série, este aspeto é mais grosseiro e explícito), “Dead Ringers” não estigmatiza o corpo (fetos e todo o tipo de fluidos fazem parte deste programa) e vai incidir em questões como a violência obstétrica e a relação entre a frustração e a maternidade. As personagens de Beverly e Elliot, tal como no filme, têm carácteres distintos e bem vincados: uma é tímida, insegura, conserva o instinto materno, a outra é predadora, mordaz, está sempre ao ataque.
O que as distingue fisicamente à partida dos primeiros dois episódios (realiza-os Sean Durkin, o autor de “Martha Marcy May Marlene” e de “O Ninho”) é que uma tem o cabelo apanhado e a outra o cabelo solto, comprido. Mas há alturas em que, matreiras, elas trocam de papéis (e de penteados), baralhando tudo à volta delas naquele hospital de Nova Iorque em que ajudam bebés a vir ao mundo e cuidam das parturientes. A uma dada altura Beverly enceta uma relação com uma atriz, Genevieve (Britne Oldford), deixando Elliot a roer-se, exaltada entre o ciúme e a possessão.
“Dead Ringers” é uma série feita por mulheres, com mulheres. Alice Birch criou a ideia e escreveu o núcleo da história, Rachel Weisz é a ‘superintérprete’ e ambas estão também creditadas como produtoras executivas
Noutro momento da ação, Rebecca (Jennifer Ehle), mecenas multimilionária e apresentada como a herdeira da “família que causou a crise dos opiáceos” na América (é uma referência indireta aos Sacklers), prepara-se para financiar o novo “centro de conceção” que as irmãs obstetras desejam implementar. Isto é: a série não tem qualquer pudor de relacionar as suas protagonistas com um clã que, de facto, foi enlameado pela opinião pública, acusado de corrupção e abuso de poder (o assunto é tratado no documentário de Laura Poitras sobre Nan Goldin ainda em exibição nas salas, “Toda a Beleza e Carnificina”).
“Dead Ringers”, de resto, é uma série feita por mulheres, com mulheres. Alice Birch criou a ideia e escreveu o núcleo da história, Rachel Weisz é a ‘superintérprete’ e ambas estão também creditadas como produtoras executivas. As personagens masculinas, salvo poucas exceções, não passam de figurantes, isto quando não se tornam meros objetos (por vezes sexuais) ao serviço das irmãs. Mais do que um remake do filme de Cronenberg, “Dead Ringers” é uma apropriação oportuna e muito habilidosa da obra cinematográfica.
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