Música

Teatro Nacional de São Carlos: quem te ouviu e quem te ouve

17 março 2023 7:29

“Lucia di Lammermoor” teve este mês quatro apresentações no São Carlos, em Lisboa

antónio pedro ferreira/tnsc

A decadência do nosso único teatro de ópera é penosa de se ouvir (e ver). Comprova-o a nova produção de “Lucia di Lammermoor”, de Gaetano Donizetti, mas os pesadelos não são novos

17 março 2023 7:29

O lixo operático chegou a Portugal, tendo como veículo a nova produção da “Lucia di Lammermoor” (1835), de Gaetano Donizetti: um pesadelo de mau gosto, mal cantado e pior encenado. Enquanto a Gulbenkian Música trazia a Lisboa o maior e mais completo barítono da atualidade, o sueco Peter Mattei, para um antológico e inultrapassável “Winterreise”, o São Carlos preparava-se para bolsar um espetáculo de terror artístico. Houve mais teatro e drama em cinco minutos da obra-prima de Schubert do que nas duas horas e tal de Donizetti. Pegaram num encenador com um ‘conceito’ (!), Alfonso Romero Mora, e os melómanos que se lixem. O tema era a ‘fuga’ para o disparate. Personagens a dobrar — uma Lucia de agora mais a de Walter Scott (1819), etc. — cenário a armar ao esperto, uma protagonista a debitar a ‘cena da loucura’ dentro de um automóvel, com a convicção de quem estava a ler uma página de dicionário sem ligar ao significado das palavras, e o mais que quero esquecer. (Lata da casa, Rita Marques substituía a espanhola María José Moreno, cantora de carreira, que aos 55 anos não seria propriamente uma escolha óbvia para Lucia.) A voz é bonitinha, mas mais apropriada a uma Zer(o)lina. Embora o drama seja uma tragédia, não há uma gota de êxtase, sofrimento ou emoção no desempenho de Marques. Quanto a direção de atores, nicles. (A propósito: Simon Stone, no Met, também meteu carro e videofilmagem na “Lucia” de 2022.)

Suspeito que o São Carlos seja hoje o pior teatro nacional de ópera na Europa, ignorado pelas revistas da especialidade. Houve quem saísse no intervalo por vergonha; eu resisti (por dever de ofício). Ainda se houvesse belcanto, podíamos fechar os olhos e arrebitar ouvidos. Infelizmente, o único cantor convincente no estilo e na dicção foi o tenor Luís Gomes, mas agora com um toque de aspereza quando força as notas. No meio da catástrofe, destacaram-se os esforços de António Pirolli (com a Orquestra Sinfónica Portuguesa) e de Gianpaolo Vessella (com o Coro do TNSC). O ponto alto da récita foi talvez o episódio que antecede a ‘cena da loucura’, com o Coro à boca de cena a comentar o que via com o olho traseiro do telemóvel. Nota Final: na última Lucia do São Carlos, em 2000, tivemos Sumi Jo numa produção de Robert Carsen, ambos artistas de topo!