27 agosto 2022 22:33

O coro de “Les Mamelles de Tirésias”
No festival de Glyndebourne, uma produção perfeita da ópera de Donizetti, “Don Pasquale”, com o português José Fardilha no protagonista, mais um programa duplo de Poulenc
27 agosto 2022 22:33
É a mais célebre chapada na história da ópera. No III ato de “Don Pasquale”, Sofronia/Norina, a imperiosa jovem ‘esposa’ do velho ricaço, perde a paciência na argumentação e dá-lhe uma valente bofetada. É verdade que tudo não passa de uma ‘mascarada’ — neste caso, romana — como diria a Marechala do “Cavaleiro da Rosa”; mesmo assim, o momento não deixa de espantar e de doer ao público, pela crueldade. O génio musical de Donizetti faz o resto, sublinhado pela subtil mudança de luzes na encenação exemplar de Mariame Clément, em Glyndebourne. Como a mais mozartiana das cerca de 75 óperas de Gaetano Donizetti (1797-1848), “Don Pasquale” (1843) sempre teve lugar assegurado no festival das terras baixas de Sussex, fundado por John Christie em 1934. Foi, aliás, a primeira ópera que não era de Mozart a ser ali cantada (em 1939). É a última das grandes óperas buffe e talvez a obra-prima do compositor: uma comédia negra que nos deixa intrigados, mas bem dispostos. Um dos seus maiores intérpretes atuais é o barítono português José Fardilha — cantou-o no São Carlos em 2012 — razão maior para não perder esta reposição da produção de Mariame Clément (2011), agora cenicamente rejuvenescida por Ian Rutherford e com a sonoridade autêntica da Orchestra of the Age of Enlightenment sob a direção de Ben Glassberg.
A motivação do enredo é o desejo de Ernesto que vive à custa do tio, Don Pasquale da Corneto, em casar com uma jovem viúva (alegre), Norina; o velho Pasquale — que ainda não perdeu a esperança no seu próprio matrimónio — quer porém forçar Ernesto a casar com uma dama rica. O estratagema é obra de Malatesta, o médico de Pasquale e amigo de Ernesto: impinge Norina, disfarçada de Sofronia — a sua irmã, sonsa e tímida, que se recolhera a um convento — como noiva de Pasquale; celebrado o forjado casamento, a modesta ‘Sofronia’ faz a vida negra ao marido, até tudo se resolver com a aprovação das bodas de Ernesto com Norina. Subtil mas convincentemente, Clément dá uma volta apimentada ao libreto. Norina joga agora em dois tabuleiros: é namorada de Ernesto e amante de Malatesta. A ópera buffa rende-se ao cinismo das liaisons dangereuses...