2 abril 2023 14:46

Em “Toda a Terra”, que Ruy Belo publicou originalmente em 1976, ouve-se a voz poética de um homem de 40 anos que, ritmicamente, melodicamente, evoca a morte evocando o mundo
2 abril 2023 14:46
“Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra”, diz a epígrafe tirada de Vieira; mas se há nesta colectânea de 1976, penúltimo livro de Ruy Belo, uma dimensão espacial (a Praia da Consolação, seu refúgio, a cidade de Madrid, onde dava aulas na Universidade Complutense), o motivo fundamental é a passagem do tempo.
“Terra” significa mundo, o estar-no-mundo, mas também morte. Os poemas foram escritos por volta dos 40 anos, mas ninguém diria, tantas são as referências à idade e ao envelhecimento, tão constantes a premonição (“vivi o tempo mínimo devido”), a antecipação do túmulo nos lençóis da cama, a ideia de fim como “solução”, tão insistente o “ubi sunt”: onde estão os mortos, os desaparecidos, os emigrados, os afogados, as vítimas da guerra, as imagens de infância, a exaltação do Verão? Em “Toda a Terra”, o “lastro que a consciência impõe ao pensamento” é, de um lado, o quotidiano reduzido ao mais corriqueiro (lavar os dentes, sentar-se num café) e, do outro, o discurso de grande fôlego que vai do decassílabo ao versículo, em verso livre, sem pontuação, com anáforas, homofonias, assonâncias (uma retórica tributária do barroco e do modernismo, como lembra o prefácio de Luís Adriano Carlos). Ritmicamente esmagador, mesmo quando exasperante, esse mecanismo lírico sustenta uma linha melódica e suscita um auto-engendramento feito de reincidências e oposições. Isso é notório nos poemas sobre encontros ou desencontros amorosos, dos quais se destaca o assombroso ‘Muriel’, poemas nos quais o sujeito conhece pela primeira vez quem já perdeu ou recupera uma imagem que nem sequer existe. E se são diversas as personagens históricas convocadas, de Garcilaso de la Vega a Salvador Allende, o centro do livro é o ‘eu’ em perda, elegíaco, pré-póstumo, já sem deus e agora sem esperança, que ensaia “uma forma de me despedir” e que, se quer ainda alguma coisa, logo acrescenta que “quero só isso nem isso quero”.