15 janeiro 2023 16:34

Depois da exposição, a Biblioteca Nacional publica o catálogo que junta os livros dos Serviços da Censura, que por pouco não se perderam, à lista de livros proibidos
15 janeiro 2023 16:34
A história podia ser outra, mas, numa das idas ao Depósito do Fundo Geral da Biblioteca Nacional (BN), Luís Sá reparou que existiam livros nas prateleiras com lombadas carcomidas que interrompiam o “comboio” de livros novos: “De 20 em 20 ou de 30 em 30 livros apareciam manchas de livros diferentes.” Além das velhas lombadas, responsáveis pelo “estranho” efeito visual, o selo da cota do livro aparecia num local diferente. Luís Sá sabia que o mesmo acontecia com os livros da Biblioteca Popular — cuja transferência da Academia das Ciências para a BN estava a decorrer. Intrigado, decidiu consultar esses velhos livros, e para sua surpresa descobriu neles o carimbo da censura. Iniciou então um périplo pelos diferentes depósitos. No final, Luís Sá e Manuela Rêgo, também funcionária da BN, descobriram mais de mil livros que, até à Revolução dos Cravos, tinham feito parte do arquivo dos Serviços da Censura. Nasceu assim a Biblioteca da Censura e uma exposição na BN, “Obras Proibidas e Censuradas no Estado Novo”, que terminou em setembro de 2022. É agora editado um catálogo, com o mesmo nome, que recolhe a identificação das obras, os índices e dois estudos — um do investigador Álvaro Seiça e outro do jornalista José Pedro Castanheira. Os dois analisam este importante achado, que vem juntar-se a um outro realizado seis anos depois da Revolução. Altura em que o então diretor da BN, João Palma-Ferreira, descobriu a existência das “Obras Proibidas”, também objeto de atenção desta mesma edição: “Em junho de 1980 vim a deparar com ‘estantaria’ onde se conservavam ‘obras proibidas’ pelo anterior regime, políticas e outras de carácter pornográfico (...).”
Parte da história que agora se conta sobre a Biblioteca da Censura podia ter-se perdido, tendo em conta que as obras que a constituem foram remetidas ao esquecimento, em momentos muito diferentes, ao longo de quarenta e tal anos de democracia. O primeiro momento aconteceu logo em 1974, nos dias que se seguiram à Revolução, quando, na euforia da liberdade, populares ocuparam os Serviços da Censura, atirando livros e documentos pelas janelas. A destruição total do arquivo foi impedida por Oliveira Marques. O historiador e diretor da BN solicitou a um funcionário da sua confiança que recolhesse das instalações da Direção dos Serviços da Censura, na Rua da Misericórdia, em Lisboa, todos os livros que conseguisse. Mas a entrada destes exemplares na BN só foi dada em 1975. Colocados em caixotes, estes livros ficaram por consultar durante os 30 anos que se seguiram; e só voltaram a ser manuseados quando o século XXI já cumpria quase uma década. Sujeitos a uma catalogação, que terá ocorrido em 2008 ou 2009, acabaram por não desencadear qualquer análise ou estudo. Ignorou-se a sua origem, como os golpes a que tinham sido sujeitos pelos censores. Contrariando o que seria natural, não foram reunidos enquanto coleção que vinha dos Serviços da Censura, mas dispersos por vários depósitos do Fundo Geral. Colocados lado a lado com os livros de Depósito Legal que no momento da catalogação davam entrada, os livros censurados permaneceram “ocultos” durante a década que se seguiu. Podem até ter sido requisitados, consultados e lidos; mas em nenhum momento foram associados, formal ou informalmente, aos Serviços da Censura. A sua natureza só voltou a revelar-se face ao olhar curioso de Luís Sá em 2017. E foi a partir daí que se conseguiu identificar mil livros no meio das três milhões de espécies que existem no Fundo Geral — um trabalho manual, ao qual se seguiu uma análise aprofundada e um cruzamento com as fichas da Direção dos Serviços da Censura, que haviam sido transferidas da BN para o Arquivo Nacional da Torre do Tombo 20 anos antes.