Personagem e escritor nasceram perto um do outro, na região da Galícia, disputada pelos Impérios Austro-Húngaro e Russo. Ambos eram judeus que fizeram aliá (emigração) para a Palestina, estabelecendo- -se em Jafa. Ambos lidam com um hebraico em metamorfose entre língua bíblica e língua coloquial, a meio caminho entre as duas. Pelo menos neste tópico a personagem, Isaac Kumer, poderia ser o alterego do escritor Samuel Joseph (Shai) Agnon. Decerto que o fundador da literatura hebraica moderna lhe terá emprestado muito da sua experiência pessoal — a de um herdeiro do judaísmo leste-europeu que, em fuga dos pogroms de inícios de século, chega a um Levante mítico bem mais complexo do que imaginava.
A língua portuguesa ainda não o tinha lido naquilo em que foi exímio: o romance. Por isso a tradução de “Ainda Ontem”, de Lúcia Liba Mucznik, financiada por crowdfunding, é um acontecimento literário incontornável. Em 1945, quando foi publicada, Agnon já escrevera três romances de relevo, mas é neste que reconstitui as impressões e a realidade de Jafa pelos olhos de um galiciano recém--chegado, empurrado pelos ideais sionistas aos quais um judeu de então não seria indiferente. O livro possui um tom “deliberadamente arcaico”, como assume a tradutora, pleno de léxico rabínico mesmo quando se trata de descrições quotidianas. “Vejo que te fiaste do caráter das pessoas, que quando têm uma dúvida é sabido que não há razão para duvidar” — frases oraculares como esta são comuns na boca das personagens.