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Ler é conhecer a história da colonização: quem o defende é o Nobel da Literatura 2021, Abdulrazak Gurnah

O escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah
O escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah
Henry Nicholls/REUTERS

O Nobel da Literatura de 2021, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, defende que a ficção literária pode ajudar a conhecer a história da colonização portuguesa, ainda que não substitua o trabalho científico dos investigadores

"A história do colonialismo português em África está bem documentada pelos historiadores. Mas aposto que a maioria dos portugueses não a conhece", exemplificou Abdulrazak Gurnah. A entrevista foi conduzida pela agência Lusa, a contexto da participação do autor no AKÉ Arts & Book Festival, em Lagos, Nigéria.

Sobre a presença durante séculos de potências europeias no continente africano, uma realidade marcada por racismo e crimes violentos contra os povos nativos, perdura "um hiato que a literatura pode preencher".

Para o Nobel, nascido no antigo Sultanato de Zanzibar, integrado na Tanzânia, um romance contribui para divulgar factos históricos "que o sistema tem silenciado ou que apenas tem negligenciado".

"É aqui que a literatura nos pode levar, para essas histórias e notícias que ainda não foram dadas", acrescentou.

O autor de "Afterlives" ("Vidas Seguintes" em português) diz que esse foi o seu propósito nesta última obra. Publicada em 2020, aborda o tema da colonização alemã em África, "já investigada por historiadores" e outros académicos.

"A literatura pode construir uma ponte entre o saber académico e a imaginação popular"

Mas quando trata de "algumas situações de injustiça", associadas a colonização, guerras, racismo e refugiados, por exemplo, não está "a pensar em transformar a sociedade", matéria que deixa à reflexão dos leitores.

"É importante que as pessoas tenham prazer com a leitura e esse é para mim um ponto importante", reiterou o professor universitário jubilado de 73 anos. Desde desde 1968 que vive no Reino Unido, onde entrou como refugiado.

Abdulrazak Gurnah não tem a preocupação de querer mudar o mundo com as suas obras. Diz que corre até o risco de "serem apenas palavras lançadas ao vento".

Na sua opinião, "a literatura é também uma forma de dar notícia sobre algo que não é do conhecimento geral" e cujo resultado depende de quem lê.

“O que acontece a seguir não está nas minhas mãos, porque as pessoas têm de se transformar a elas próprias”. Ao lerem os seus livros, "podem, inclusivamente, reconhecer-se nas situações. Há histórias que já conhecem, mas a ficção torna-as mais acessíveis", acrescentou.

A Lusa questionou Abdulrazak Gurnah sobre José Saramago, premiado também com o Nobel da Literatura, em 1998, cujo centenário está a ser comemorado e que se dedicou à "desconstrução da história", como afirma Carlos Reis, comissário das comemorações dos 100 anos do nascimento do escritor português.

"Ensaio Sobre a Cegueira" (1995) é o livro do congénere Nobel que o tanzaniano conhece melhor, tendo outros à espera na prateleira: "Ler mais Saramago é uma das coisas que tenho de fazer".

"Sei que escreveu muito e que é muito admirado em Portugal", comentou, para revelar que tem acompanhado o trabalho de autores africanos lusófonos, como Mia Couto (Moçambique), Pepetela e José Eduardo Agualusa (Angola), com quem esteve no Macondo Literary Festival, há dois meses, em Nairobi, Quénia.

O que levou o Nobel de 2021 a escrever "Vidas Seguintes" tem a ver com "a forma como foi tratada" a I Guerra Mundial, a Grande Guerra de 1914-1918 que eclodiu na Europa, mas que, recordou, teve também efeitos devastadores em África e noutros continentes.

"É claro que a maior violência e o mais elevado número de mortos ocorreram na Europa. Mas por que é que as pessoas não se questionam sobre as consequências do conflito no resto do mundo?", perguntou.

Face a uma narrativa historiográfica predominante nas antigas potências coloniais, há repercussões da Grande Guerra noutras latitudes que importa "não negligenciar", preconizou.

"Houve milhares de vítimas desta guerra em África", enfatizou Abdulrazak Gurnah. Foi disso que quis falar no seu último livro.

Sob o lema "Homecoming" ("Regresso a casa"), o AKÉ Festival de Lagos, com 10 edições, é liderado pela editora e escritora Lola Shoneyin.

A conferência de Abdulrazak Gurnah, no sábado, foi um dos momentos altos do programa, contando com a presença do nigeriano Wole Soyinka, primeiro Nobel da Literatura africano, em 1986.

Portugal, através do Festival Literário Internacional do Interior (FLII) - Palavras de Fogo, foi o único país lusófono representado.

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