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Quase 50 anos depois, Wole Soyinka volta ao romance e faz um retrato implacável do caos no seu país

28 outubro 2022 22:01

O título do livro encapsula um dos traços de Soyinka, Nobel da Literatura em 1986: a ironia — o povo nigeriano já foi considerado o “mais feliz” do mundo

irene becker/getty images

Wole Soyinka, Nobel da Literatura em 1986, debruça-se sobre o pântano moral da Nigéria, no meio de um caos do qual é possível, ainda assim, rir. São “Crónicas do Lugar do Povo Mais Feliz da Terra”

28 outubro 2022 22:01

Octogenário a caminho dos 90 anos (nasceu em 1934), figura intocável no panteão artístico nigeriano, Wole Soyinka, um Nobel de Literatura que se distinguiu principalmente como extraordinário dramaturgo, atingiu um estatuto que lhe permite fazer o que lhe der na real gana. Em 2020, em plena pandemia, e no momento em que o seu país natal celebrava os 60 anos de independência, decidiu então apontar o dedo às circunstâncias políticas, económicas, culturais e religiosas que tornam a Nigéria um país falhado, em convulsão permanente e de futuro muitíssimo sombrio. Da corrupção endémica aos tráficos mais abomináveis, da manipulação das massas ao charlatanismo espiritual, nada escapa à denúncia do escritor, por interpostas personagens, mas sempre num registo que oscila entre a descrição crua de realidades abjetas e a pura sátira, com passagens de um humor que chega a ser hilariante. Uma estranha mistura, mas espantosamente eficaz.

O título do livro encapsula, desde logo, um dos traços principais da escrita de Soyinka: a ironia. Em 2003, o povo nigeriano foi considerado efetivamente o “mais feliz” do mundo, num inquérito publicado pela revista “New Scientist”. Quando as premissas dos estudos se tornaram menos subjetivas, os primeiros lugares passaram a ser ocupados pelos países do Norte da Europa, mas a Nigéria ainda liderou ocasionalmente a lista dos povos “mais otimistas”. Este lado solar é evocado com muita graça num capítulo sobre a pletora de festivais e de prémios que acontecem em todas as alturas do ano, transformando a vida pública do país numa sucessão de celebrações e instâncias de alegria partilhada, à laia de cortinas de fumo que distraem a população da miséria em que vive e dos abusos a que é sujeita.