Lourdes Castro “subiu para as nuvens” há um ano. Agora há uma exposição que celebra a artista

Um ano depois da morte de Lourdes Castro, a artista que se projetou do Funchal para o mundo, realiza-se na Madeira, pela primeira vez, uma devida homenagem
Um ano depois da morte de Lourdes Castro, a artista que se projetou do Funchal para o mundo, realiza-se na Madeira, pela primeira vez, uma devida homenagem
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Fez em janeiro último um ano que Lourdes Castro “subiu para as nuvens”, como gostava de dizer quando se referia ao momento em que deixasse a terra. Tinha então 91 anos, grande parte deles passados no Funchal, onde nasceu a 11 de dezembro de 1930. Ali viveu os primeiros 20 anos, capitais e formativos da sua personalidade e sensibilidade artística, até partir durante as três décadas seguintes primeiro para Lisboa, para frequentar Belas-Artes, depois para Munique e finalmente para Paris, onde encontrou pares e a matéria para a sua singularíssima obra. Até de novo regressar à ilha, tinha então 53 anos, adquirindo com o marido, o artista Manuel Zimbro, um terreno fora do Funchal e fazendo dele o seu refúgio. “Não poderia ter nascido que não na Madeira”, disse numa entrevista concedida à RTP na década de 70, explicando a sua relação com o lugar que lhe deu o compasso certo do tempo e do seu modo de fazer. Podemos voltar a ouvi-la agora na sua inconfundível voz melódica e pausada, a dizer em loop, numa instalação sonoplástica que integra a exposição “Como uma Ilha sobre o Mar: Lourdes Castro” no Mudas — Museu de Arte Contemporânea da Madeira: “Não tenho pressa. Nunca tive pressa de nada.”
Foi preciso esperar todos estes anos para que se realizasse pela primeira vez na Madeira uma grande exposição para homenagear a sua mais consagrada artista. Márcia de Sousa, curadora e diretora do Mudas, começou a delineá-la há dois anos, ainda Lourdes estava viva, chegaram a falar sobre o assunto, mandou-lhe uma carta a convidá-la para integrar o projeto, mas a artista respondeu que a saúde já não lhe permitia corresponder ao repto.
Só depois da morte, com a ajuda de Nuno Brazão, sobrinho e único herdeiro da artista, que lhe deu carta branca para entrar na casa-ateliê, Márcia de Sousa pôde mergulhar no extraordinário arquivo de Lourdes Castro, para perceber o manancial que tinha entre mãos. Conta-nos a curadora, recordando esse primeiro espanto: “[Lourdes] tinha alma de arquivista. Registava e guardava tudo, não só o que se referia a si mas também aos amigos e àqueles com quem trabalhava. Era muito organizada na sua forma de guardar memórias e de pensar o trabalho, e são raros os artistas que têm as coisas tão organizadas, o que é um paraíso para qualquer investigador. Trabalhava como respirava, e a obra é imensa, porque não fazia separação entre o mundo artístico e o mundo pessoal.”
E se o tempo lento foi o leitmotiv no modo de estar e na sua forma de viver, é também vagar o que se pede para absorver esta intensa mostra. São cerca de 300 obras reunidas entre muitas instituições e coleções privadas, a que se junta a coleção do Mudas, assim como um imenso espólio documental, que se vai entrelaçando no percurso expositivo em mesas-vitrinas distribuídas por várias salas, para traçar a biografia. Álbuns de família e fotografias na infância, ela minúscula de regador na mão e já rodeada de plantas, na quinta da avó na Praia do Formoso, no tempo de estudante no Colégio Alemão, onde aprendeu a falar a língua, ou a passagem pela Escola de Belas-Artes, em Lisboa, e as primeiras coletivas, onde vem referida nas criticas como a “artista rebelde”. Há sobretudo muitas fotografias, já no sótão da Rue des Saints-Péres, em Paris, o centro dos artistas da sua geração, onde cozinhava para todos enquanto ela e o artista René Bertholo, o primeiro marido, concebiam a revista “KWY”, que marca um dos momentos relevantes na obra, toda concebida em produção manual de tiragem limitada, e que têm um lugar de destaque na exposição. Há também muitas cartas e pequenos objetos, anotações e desenhos das páginas dos diários, recados, bilhetes para os amigos com frases curtas e essenciais, como aquele que escreveu para Arlete Alves da Silva, da Galeria 111, quase no final. “Eu estou quietinha, olhando o mar, horizonte sem fim das recordações.”
Logo no início da mostra, ainda fora das salas, um pássaro — acrílico amarelo sobre tela branca na parede escura — capta o nosso olhar. Foi uma das últimas peças realizadas por Lourdes Castro, feita por encomenda em 1994, para um restaurante no Funchal. O pássaro é um garajau, espécie autóctone da ilha, praticamente extinto, que deu nome ao lugar no Caniço, onde Lourdes e Manuel Zimbro elegeram viver. Márcia de Sousa quis isolar esta peça, sugerindo um diálogo metafórico expresso no título — “Como uma Ilha sobre o Mar” —, tentando assim enquadrar a singularidade de Lourdes Castro ao escolher voltar ao lugar de origem, insular e “ultraperiférico”, depois de se ter projetado como uma artista internacional. “Teve a liberdade de viver numa ilha, saindo, entrando, fazendo o seu caminho, sem nunca se deixar contaminar”, diz. Essa liberdade matriz no seu modo de ser é apreendida desde logo na experiência do lugar nos anos da “infância ao pé do mar e com muito espaço”, como contou na sua última entrevista de vida, concedida à Revista E, em agosto de 2019, onde também referia ter estranhado muito, quando chegou a Lisboa para ir estudar pintura em Belas-Artes, “que as colegas não fossem tão livres” quanto ela. Foi movida por essa mesma liberdade que decidiu não terminar o curso e partir com Bertholo para Munique, depois de ver sublinhado por cima de seis telas académicas a palavra “excluído”, por não ter pintado na cor certa a carne dos corpos dos modelos. Podemos encontrar agora três dessas telas na mesma sala onde se encontra exposto um autorretrato, ainda do tempo da academia — nele, Castro pinta-se com os olhos vazados, ela que gostava tanto de ver.
“Sempre desenhei, não sinto que seja uma coisa muito especial ou extraordinária nem que seja arte. Para mim, é uma forma de viver”, dirá. É um sopro de alegria e leveza que emana das peças que vão surgindo, onde podemos captar a sua intensa e aparente ligeireza. “Do ponto de vista técnico e formal, vai usando vários materiais e suportes, sempre como base de um trabalho de experimentação muito livre a partir do que tem à mão. Depois há um tema de eleição que a acompanha ao longo da vida, a figura e a sombra, e se repete como um mecanismo constante, até ser presença quase etérea”, indica a curadora.
É também uma mulher do trabalho. Uma artista pluridisciplinar e laboratorial, que tanto se empenha a conceber livros de artista, grande referente na obra, manuseados e feitos à mão, como se dedica a montar o “Teatro de Sombras”, para explorar o efeito do movimento do tempo e da luz.
Vamos observando assim a jovem artista nos anos do início, ainda muito próxima da geração da Nouvelle Vague, praticando o conceito de arte e vida, transformando o quotidiano em matéria plástica, onde tudo se mistura nos gestos prazenteiros e na demanda do fazer. Recorrendo nessa fase a uma linguagem mais pop, nas cores e no uso de colagens e assemblages, até rapidamente, logo no início da década de 60, chegar à “sombra”, o seu grande tema de eleição, onde toda a presença é matéria captada in situ e em tempo real, no momento em que se reflete no jogo da luz, fixando gestos e figuras a partir da ausência. Seja através de retratos de amigos, de autorretratos, de objetos, seja pela captação de sombras da matéria viva e orgânica, como as plantas dos seus vasos e do jardim, impressas e reproduzidas em materiais, como a serigrafia, depois o plexiglas colorido em cores fortes e mais tarde bordado em lençóis à mão que suspendem no ar os corpos de amigos no momento do sono. É a partir destes gestos, delicados e aparentemente simples, que toda a obra se ajusta. Será sempre seguindo o movimento da sombra que irá dirigir o seu olhar, aprendendo o que lhe é tangível e não tangível. Ao percorrermos a exposição, reencontramos a originalidade da sua obra, sempre atravessada pelo mesmo sopro de alegria e aparente leveza.
Quando em 1983 regressam à Madeira, Lourdes Castro e Manuel Zimbro encontram um vasto terreno isolado, no Caniço, perto do Funchal, com vista para o mar e para as Ilhas Desertas, onde construíram a casa do retorno, que ele desenhou, e o jardim que ela cuidava, habitando um mundo só seu. No decorrer da década de 90, Lourdes Castro foi deixando de realizar obra, fundindo cada vez mais profundamente o seu fazer neste território de pertença. No documentário “Pelas Sombras”, realizado por Catarina Mourão, em 2010, é ela quem nos diz “Agora é a minha tela. Enrola quando chove a valer, estica demasiado no calor de agosto. Continuo a pintar um quadro só. Que nunca estará pronto.”
Atravessamos na companhia de Nuno Brazão o terreno com vista para o mar e para as Desertas, onde vemos duas enormes árvores que Lourdes plantou, a quem chamava “os meus gladiadores”, porque lhe tomavam conta da casa, a poça envolta em musgo para os passarinhos virem tomar banho e beber água ao fim da tarde, o muro antigo, as pedras que juntava, o alecrim. Tudo está no seu lugar, todos os dias o jardineiro com quem Lourdes trabalhava vem tratar. No quarto do casal há uma pequena janela que recebe o último raio de luz do cair da tarde, e na casa de banho outra janela foi rasgada sobre o jardim interior — só a vê quem está deitado na banheira. Também entre os ateliês dos dois há uma pequena janela quase secreta para que pudessem comunicar. Lourdes costumava dizer que ele era a luz e ela a sombra. Uma coisa não vive sem a outra. “Quando o meu tio morreu, ela ficou 15 anos sem entrar no ateliê dele”, conta o sobrinho Nuno. Entramos no ateliê de Lourdes, ainda cheio de materiais precioso, frágeis e de valor único, não só referentes a Lourdes Castro mas também a muitos outros artistas que precisam de continuar a ser tratados e inventariados.
Com a realização da mostra do Mudas, um primeiro passo foi dado, mas é preciso continuar: “Esta herança representa um problema bom.” Mas há muitas interrogações: por exemplo, o que irá acontecer à casa-ateliê? Nuno Brazão não desvenda: “Conversávamos muito, mas a minha tia não quis deixar indicações sobre nada do que iria acontecer depois.” Em cima da secretária, entre as mil coisas que lá estão, descobriu um papel que diz “fotografem tudo antes de mexer”, mantendo assim, neste recado, tão subtil quanto viva a sua presença.
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