
Organizada em três capítulos e dividida entre moda e arte contemporânea, a exposição “Love — Marrakesh Opened My Eyes to Color” decorre até ao final do mês no Palácio Cadaval e na Igreja de São João Evangelista
Organizada em três capítulos e dividida entre moda e arte contemporânea, a exposição “Love — Marrakesh Opened My Eyes to Color” decorre até ao final do mês no Palácio Cadaval e na Igreja de São João Evangelista
texto
É lendária a paixão de Yves Saint Laurent (Y.S.L.) por Marraquexe, a cidade imperial berbere de souks labirínticos e energia contagiante, rodeada de extensos palmeirais. A primeira vez que por lá aterrou, em 1966, o impacto provocado no designer de moda francês foi tão grande que no regresso a Paris fixou a sensação: “Descobrir Marraquexe foi um grande choque. Esta cidade abriu-me os olhos para a cor.” Não eram tanto os ocres ou castanhos intensos que cobrem como uma mancha monocromática toda a cidade que tinham impressionado o criador, mas os rosas e os azuis, os verdes e os violetas que sobressaíam nas jelabas e cafetãs dos seus habitantes, “formando deslumbrantes grupos”.
A ousadia do seu trabalho a partir de então, escreveu, deveu-a este país às suas pujantes harmonias e arrojadas combinações, ao fervor da sua criatividade. Isto aconteceu quatro anos depois de ter fundado com Pierre Bergé, na altura o companheiro e partner no negócio, a marca com o seu nome. Foi também por esta época que o casal comprou a sua primeira casa em Marraquexe. Desde então, nunca mais largou a relação com Marrocos, acabando por se transformar ele mesmo numa referência maior na cidade, onde tem um museu com o seu nome.
Este ano, em que a casa Y.S.L. comemora os 60 anos da sua fundação com um programa de exposições que lhe são dedicadas, esta simbiose voltou a estar presente numa mostra organizada em três capítulos, que se dividem entre moda e arte contemporânea e tem por título “Love — Marrakesh Opened My Eyes to Color” e decorre no Palácio dos Duques de Cadaval e na Igreja de São João Evangelista, em Évora. Partindo de uma série de cartões que Saint Laurent enviava de Marraquexe aos amigos a desejar bom ano, desenhando sempre uma composição de cores em torno da palavra “Love” e do ano em que eram feitos, a curadora franco-marroquina Mouna Mekouar concebeu uma mostra que junta 13 nomes da cena artística contemporânea de Marrocos e alguns consagrados dos primeiros movimentos artísticos pós-independência, como Mohamed Melehi, referência maior e impulsionador do movimento artístico contemporâneo e da Escola de Casablanca. “Se a cor e a matéria são questões fundadoras na obra de Saint Laurent, ela é também uma linha fundamental que atravessa várias gerações de artistas nacionais”, indica. Neste leitmotiv, ancorado nas raízes culturais e no gesto da mão, é também uma identidade transversal que se revela, compondo assim um singular mapa artístico do território.
Logo no início, onde a imagem a preto e branco de Yves Saint Laurent domina a sala, uma pequena composição onírica realizada por Abbé Saladi — o artista de Rabat que começou por vender as suas obras estilizadas e surrealistas no final dos anos 70 na Praça Jemaa el-Fna e só muitos anos mais tarde se tornou pintor consagrado — estabelece a ligação entre os dois criadores. A obra representa o Jardim Majorelle, lugar onde o pintor francês Jacques Majorelle construiu a sua casa e um jardim botânico inspirado nos jardins islâmicos, sonhado e desejado por Yves Saint Laurent, que o adquiriu com Bergé na década de 80. Na mesma sala, uma tela tapeçaria feita de fibras de palmeiras de Tissekmoudine — uma região a sul de Agadir —, usadas na cestaria local, de Amina Agueznay, artista de Casablanca que estudou arquitetura nos EUA e que nos transporta para o universo dos artesãos e que são um dos organismos mais importantes na economia do país.
Esta obra foi elaborada em conjunto com as tecedeiras locais, que trabalharam a matéria-prima que compõe a paisagem artística de Amina Agueznay. Outras paisagens vão surgindo ao longo do percurso, transportando-nos para vários territórios metafóricos e artísticos, como as palmeiras de aço e lâmpadas elétricas coloridas, inspiradas nas cores dos táxis de Casablanca, Tanger ou Fez, de Yto Barrada, a artista franco-marroquina que criou a Cinemateca de Tânger e nesta instalação, pop e ambígua, reflete sobre o movimento e a transformação da vida urbana, usando um dos símbolos do território rural nacional; ou as paisagens de Nassim Azarzar, artista e designer gráfico que se inspirou na iconografia que enche de autocolantes os camiões que atravessam o país, transformando-as em manchas gráficas de cor.
A ousadia do seu trabalho deveu-a este país às suas pujantes harmonias e arrojadas combinações, ao fervor da sua criatividade
Também Soufiane Idrissi, fundador dos Radar Collective, uma plataforma que transforma imagens da internet em obras de arte, apresenta uma tela gráfica de composições cromáticas, composta da matéria intangível do digital. Outras paisagens nos trazem Hicham Berrada, um dos artistas mais consolidados na nova geração que tem formação científica e explorou protocolos científicos sobre vários elementos escondidos na terra, que, manipulados através da temperatura e do tempo, apresentados dentro de caixas de luz, se vão transformando em estranhas e luminosas composições que lembram cenários marítimos; ou Younes Rahmoun, professor na Escola de Belas Artes de Tetuan, onde nasceu em 1975, que representa uma bela visão do mundo sufi numa tela composta por 67 desenhos individuais, ritmando de cor pequenas figuras geométricas subtilmente desenhadas que fazem lembram as composições de mosaicos dos interiores das madraças. Numa sala só para si, Meriem Bennani, estrela emergente que nasceu em Rabat em 1988 e tornou-se viral na cena artística internacional com a publicação no Instagram de pequenos vídeos de histórias ficcionadas durante a covid-19, apresenta uma colagem de imagens de documentários, reality shows, filmes de animação e filmagens de telemóvel que nos devolvem, numa linguagem mágica, pop, a cultura contemporânea, local, global.
Regressando ao universo de criação de Yves Saint Laurent, no centro da Igreja de São João Evangelista, o designer e curador Stephan Janson juntou 14 manequins com peças do designer de moda criadas entre 1970 e 1990, provenientes de coleções particulares e da coleção de Pierre Bergé, numa desfile imaginário enquadrado pelos painéis de azulejos do século XVII. Também a Bergé é prestada homenagem numa exposição com curadoria de Alexandra Cadaval, responsável pela programação deste reabilitado espaço cultural, com uma instalação de vestidos escultóricos de Noureddine Amir, que, apoiado por Bergé, foi o primeiro criador marroquino a apresentar uma coleção de alta-costura em Paris.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: ASoromenho@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes