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A teatralidade crepuscular de “Noite” faz-se de peças no teto, assentes em estruturas transparentes ou quase ocultas

1 outubro 2022 18:17

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André Romão apresenta “Noite” na Galeria Vera Cortês, em Lisboa. O crítico de arte Celso Martins dá-lhe quatro estrelas

1 outubro 2022 18:17

A produção de André Romão (Lisboa, 1984) favorece com frequência a combinação de premissas de origem arqueológica e um conjunto de práticas artísticas que recodificam objetos encontrados. Por arqueologia podemos aqui entender o resgate de objetos do passado já ausentes do circuito de sentidos e presenças da contemporaneidade e que deste modo vêm interpelá-la. No caso de “Noite”, o ato de iluminar tem um duplo e complementar sentido: um, literal, porque por um lado ele atua sobre os objetos convocados, intervencionando vários deles com lâmpadas e outras marcações que se vão encaixar em esculturas erodidas do século XVIII provenientes de Espanha e da Alemanha.

Por outro, porque essa ideia de (mútua) iluminação pode transferir-se igualmente para a relação contaminadora que as peças estabelecem com os pequenos poemas escritos nos últimos anos pelo artista, tão noturnos como as intervenções objetuais. No texto que acompanha a exposição, Romão sugere um estado insone que lhe permite mover-se por entre os objetos e associá-los num processo de enxertia (onírica?) que resulta em obras híbridas como a escultura de madeira morta que entronca numa ramada de árvore viva; na pontuação lumínica de vários fragmentos do corpo ou na associação de um molde de cabeça (um autorretrato simplificado?) a uma tapeçaria do século XVII. Há um princípio de afetação e reconfiguração poética a partir desse processo no qual ele assume o papel de conciliador de tempos, contextos e estados da forma e da matéria. Penduradas do teto, assentes em estruturas transparentes ou quase ocultas em cantos, essas obras apresentam-se no espaço com uma teatralidade crepuscular o que adensa a estranheza dos seus corpos atravessados por mundos diferentes, mas agora investidos de uma nova existência. / Celso Martins