Cinema: Julia é a biker sem medo de “Rodeo”, a longa-metragem de estreia da francesa Lola Quivoron
Julie Ledru interpreta Julia, uma rapariga com cerca de 20 anos cujo mistério não se desvenda — as informações de que dispomos são obtidas a partir de discretas pistas visuais ou verbais
Premiada em Cannes 2022, “Rodeo” cola-se ao corpo de uma jovem cavaleira do asfalto. É um dos filmes que se apresenta esta quinta-feira nos cinemas nacionais
A primeira longa de Quivoron arranca em registo realista, com uma longa sequência de câmara à mão que, por via de travellings rentes ao corpo, vai acompanhando os passos de uma personagem que está ‘fora de si’. Trata-se de Julia: uma rapariga com cerca de 20 anos (Ledru) que, nesse quadro, sai disparada do seu apartamento, insultando e empurrando à sua passagem todos quantos tentam detê-la. Entramos assim em “Rodeo” como se tivéssemos sido colhidos por uma avalanche que nem sequer vimos chegar, dando por nós a perguntar onde estamos e o que se passa.
À primeira pergunta, responderá o décor opressivo com o qual a protagonista se confronta ao sair do seu prédio: estamos, manifestamente, num bairro social de uma cidade francesa que nunca será nomeada. À segunda, será Julia quem responderá, no momento em que um vizinho procura acalmá-la: ficamos então a perceber que o motivo da sua cólera se prende com o roubo da sua mota, durante a noite. A sequência seguinte (que será objeto de diversas variações ao longo do filme) lança luz sobre o modo como ela obteve a moto de cujo roubo se queixa: furtando-a ela própria. Nela, descobri-la-emos num subúrbio da classe média/alta e, em concreto, na moradia de um vendedor privado, a quem, com falinhas mansas, exigirá um test drive antes de realizar a compra, aproveitando a abébia para fugir pela estrada fora.
Julie Ledru interpreta uma biker sem medo em “Rodeo”, que se estreia em sala a 11 de maio. Já mostrado em Roterdão
Ao volante dessa mota, ela entrará numa pista urbana onde um grupo de bikers (todos eles homens na casa dos 20) vão praticando as acrobacias que, tudo no-lo diz, ela sonha um dia vir a conseguir fazer. Será aí que ela conhecerá Kaïs: um biker que — sob a tutela de um homem que se encontra a cumprir pena de prisão — se dedica, com os camaradas do seu gangue, ao furto de motas na região.
Com a crónica da difícil integração de Julia nesse bando (onde, como única mulher, ela constitui um elemento estranho), ocupar-se-á um filme que se destaca pela forma como se gruda ao corpo da protagonista: uma wild child cuja agressividade — muitas vezes, introvertida — vai sendo exemplarmente trabalhada por Ledru. Veja-se, por exemplo, como ela consegue dar a ver o seu corpo como o local da descarga das ‘correntes emocionais’ que a atravessam, e, em particular, daqueles acessos de raiva que, não tendo onde se manifestar no mundo, regressam à origem (o corpo) para a eletrizar. Também notável é o que Quivoron opta por tornar inconspícuo: o contexto social e a psicologia das personagens.
“Rodeo” é um exercício behaviorista, onde — à exceção da encenação de um par de pesadelos — só os comportamentos são portadores de sentido, e onde pouco nos é sugerido sobre a situação e o trajeto de Julia: as informações de que dispomos são obtidas, por inferência, a partir de discretas pistas visuais ou verbais (o irmão diz-lhe, às tantas, que a mãe não quer que ela volte a casa).
Lola Quivoron, realizadora de "Rodeo"
Para isolar assim a protagonista, o filme precisa de a destituir, num gesto algo artificial, de passado e futuro: não encontramos flashbacks ou diálogos que nos deem acesso à sua biografia (salvo uma breve alusão às suas raízes caribenhas), nem, tão-pouco, qualquer referência a um projeto a desenvolver no tempo — quando Julia ouve Kaïs exprimir a vontade de ‘sair dali’, limitar-se-á a responder-lhe com o seu silêncio.
Após essas subtrações, o que fica? O retrato de uma personagem punk que, à falta de história ou horizonte, faz corpo com o seu presente e com a sua obsessão quase fetichista com as motas (e, portanto, com a velocidade, e, portanto, com um sucedâneo da liberdade de movimentos que na verdade não tem).
Poderá dizer-se que, além do corpo tão espasmódico como emparedado de Julia, não sobra muito mais por onde pegar. Quem o disser terá razão, mas terá por certo passado ao lado de um filme que vive do desejo de filmar um desejo. No caso: um desejo de liberdade que não tem onde se materializar. Bela estreia.
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