Cinema

Cinema: José Cardoso Pires não fica vazio em “Sombras Brancas”

28 abril 2023 7:19

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Fernando Vendrell realiza a adaptação cinematográfica do livro “De Profundis, Valsa Lenta”, de José Cardoso Pires, com Rui Morisson, Natália Luiza e Maria João Bastos nos principais papéis. O crítico Jorge Leitão Ramos dá três estrelas ao drama e enaltece uma rábula solitária de Rogério Samora, a última que nos deixa

28 abril 2023 7:19

Quando soube que Fernando Vendrell estava a adaptar ao cinema o livro “De Profundis, Valsa Lenta” de José Cardoso Pires, temi o pior. Acontece que, entre todas as obras literárias impossíveis de pôr em filme, aquela em que Cardoso Pires plasma a alvura da desmemória e da incapacidade de representar coisas por palavras que o atingiu na sequência de um acidente vascular cerebral é a mais extrema. O empreendimento só podia dar desastre. Acontece que não, ou, melhor, acontece que “Sombras Brancas” não é uma adaptação dessa narrativa, parte da situação de afasia nela descrita para efetuar um trajeto pela vida e obra do escritor, caldeando biografia e literatura.

No filme, Cardoso Pires não fica vazio, plana, desliza, vagueia por uma massa de factos e de trâmites ficcionais. E Rui Cardoso Martins e Fernando Vendrell, argumentistas, temperam a primor essa mescla, tanto mais bem apreciada quanto o espectador estiver ciente dos factos biográficos e da matéria dos livros. Da irmandade e companheirismo com Alves Redol, pessoa vera, ao convívio com Alexandra Alpha, o engenheiro Palma Bravo ou Sebastião Opus Night, criaturas literárias, há um corrupio de gentes construindo a identidade do maior escritor português do século XX. E funciona. Funcionará para quem, de Pires, nada saiba? Risco assumido. Sabedoria suplementar: ter encontrado, em Rui Morisson, um ator capaz de nos fazer aceitar ser José Cardoso Pires. Verosimilhança física, antes de tudo, mas também modo de agir, tempos, sarcasmo, fechamento. Ainda: um naipe de secundários que apoia e espessa o trabalho central de Morisson, seja na continuidade narrativa, seja na irrupção momentânea. Realce: a paciente, exemplarmente discreta, Natália Luiza; e a rábula solitária de Rogério Samora — a última que nos deixa, num registo raro neste ator —, momento hílare que Artur Semedo, logo ele, homem de excessos, havia de gostar de ver.