A cultura mainstream americana — e, por inerência, o cinema que dela deriva — vive obcecada com as suas ‘figuras excecionais’: as do (super-)herói, do génio, do self-made man ou self-made woman. A banalidade e o quotidiano não são, em definitivo, territórios que costumem cativar o interesse do cinema que, nas últimas décadas, foi produzido pelos grandes estúdios americanos.
Vem este excurso a propósito da estreia nas salas da quinta longa de Ben Affleck (a sua primeira desde a insipidíssima “Viver na Noite”, de 2016), que, tendo embora por tema um ‘negócio extraordinário’ — aquele que, em 1984, foi feito entre a Nike e um rookie da NBA chamado Michael Jordan —, se centra nos jogos de bastidores empresariais e figuras de segundo plano que o tornaram possível. O problema (e a ele voltaremos) é que “Air” fica a meio da ponte política que constrói, chamando a atenção para a urgência de uma distribuição equitativa dos lucros no âmbito do mundo empresarial, ao mesmo tempo que a reserva para os casos de exceção. Mas vamos por partes.
É ao som de uma canção dos Dire Straits (‘Money For Nothing’) que entramos num filme que, sob um prisma visual, arranca com a montagem de uma série de imagens granuladas — era a era do VHS… — que vão passando em revista alguns dos ícones da cultura pop do início dos anos 80: de Ronald Reagan aos caça-fantasmas. Findo esse prefácio, somos apresentados ao protagonista: Sonny Vaccaro (Matt Damon), um dos executivos do departamento de basquetebol da Nike, que encontraremos pela primeira vez em plena campanha de marketing, oferecendo ténis da empresa a jogadores de liceu.
As sequências seguintes — que, como a maioria das demais, decorrerão na sede da Nike (situada na cidade Beaverton, no Oregon) — consistem numa sucessão de diálogos que se destinam a lançar luz sobre a situação de uma empresa que, em 1984, detinha apenas 17% da quota de mercado interno, no que toca ao calçado desportivo. Para contrariar a posição dominante da Adidas e da Converse nesse mercado, os executivos da Nike procurarão definir — numa das várias reuniões que marcam o começo do filme — quais os jogadores com os quais deverão tentar firmar acordos de patrocínio para as próximas épocas da NBA.
Cansado de ver a empresa esbanjar dinheiro com figuras menores, Sonny proporá ao CEO da Nike (interpretado pelo próprio Affleck, num registo caricaturalmente nonchalant) que a totalidade do orçamento seja investida num único jogador. Fala-se, é claro, de Jordan: um rookie de 21 anos que — acredita Sonny — virá a ser uma vedeta. Perante a recusa inicial do CEO, que considera essa estratégia demasiado arriscada, Sonny tratará de circum-navegar as hierarquias e os manuais de procedimentos, movendo montanhas para chegar à fala com os pais de Jordan, a fim de lhes expor uma ideia pioneira: a de criar um modelo de calçado desportivo (os Air Jordan que dão nome ao título) em torno da imagem do seu filho.
Para contrariar a posição dominante da Adidas e da Converse nesse mercado, os executivos da Nike procurarão definir quais os jogadores com os quais deverão tentar firmar acordos de patrocínio para as próximas épocas da NBA
Eis a base de um verborreico corporate movie (uma grande parte da ação prende-se com a encenação de reuniões e telefonemas), articulado à volta das démarches de um executivo que se deixa possuir pela força da sua ‘visão’: a da canonização em vida de Jordan. Para contrabalançar o cinzentismo do universo corporativo no qual mergulha, o filme adota um tom ultralight e bem-humorado, que tem o inconveniente de tornar as personagens uniformemente ‘engraçadinhas’.
Na verdade, não há uma de entre elas que seja mais do que um perpétuo efeito de comic relief (anulado, na sua raiz, pela inexistência de gravitas), num processo que visa transformá-las em presenças simpáticas para o espectador. Mas precisamente porque são reduzidas pelo argumento a uma dupla função (a de serem veículos de negócios e veículos de piadas), as personagens descobrem-se desprovidas de um mínimo de ‘avesso’.
Mesmo nas raras sequências em que Affleck tenta virá-las ao contrário, mostrar-nos o que elas são na intimidade, aquilo que encontramos é somente uma reprodução do ‘direito’, uma extensão do seu trabalho no mundo exterior: veja-se as duas ou três sequências em que Sonny compra comida num supermercado, antes de regressar à casa onde vive sozinho para rever às escuras os vídeos do jovem Jordan. E tanto assim é que, quando por fim algo de substantivo é dito, isso faz saliência: é o que acontece quando um dos colegas de Sonny (Jason Bateman) discorre brevemente sobre o seu divórcio, sobre a filha que só consegue ver aos domingos e que procura subornar com ténis da Nike.
Dir-se-á, talvez, que não é por aí que “Air” quer ir, que aquilo que o move é a descrição dos trâmites do Jordan deal e, em particular, a leitura política que dele extrai. Essa leitura assenta, por inteiro, na importância que o argumento atribui a uma das peculiaridades do negócio: a exigência de última hora, formulada pela mãe de Jordan, de que o seu filho viesse a receber royalties sobre cada um dos Air Jordan vendidos pela Nike (uma coisa até então inédita, no quadro dos acordos celebrados entre jogadores da NBA e os seus patrocinadores). Feito no decurso de um telefonema coreografado em grande plano, esse ultimato constitui o momento em que Viola Davis tenta injetar nos planos o peso que até aí lhes faltara, discorrendo sobre a necessidade de combater a ganância das grandes empresas: “de vez em quando, aparece alguém tão genial que os obriga a abdicar”, diz ela.
A Nike lá acaba por ceder, todos ficam contentes, e o filme termina — em modo jubilatório — com a câmara a focar o logótipo da empresa, enquanto os intertítulos revelam as receitas colossais que Jordan e a Nike arrecadaram por via do acordo. Affleck (que, no ano passado, fundou uma produtora que promete vir a repartir equitativamente os seus lucros) parece supor que ficaremos à beira das lágrimas, em face de tamanha manifestação de generosidade empresarial, mas não percebe que coloca a sua questão política da forma mais enviesada possível: do ponto de vista dos ‘homens de génio’ que estão em posição de negociar. Coeficiente de simpatia à parte, o resultado é ingénuo e caricato.
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