Cinema: “Justiça para Emmett Till”, o miúdo negro morto por mandar um piropo a uma mulher branca
Danielle Deadwyler no papel de Mamie Till-Mobley e Jalyn Hall como Emmett Till
O caso do linchamento de Emmett Till, em 1955, chega aos cinemas esta quinta-feira. Só em 2022 foi aprovada pelo Congresso a lei que define o linchamento como crime de ódio federal e o pune com severidade: ficou conhecida como o Emmett Till Antilynching Act
Não foi na Idade da Pedra, nem nos recônditos anos em que o homem branco partiu à conquista do Mundo, sentado no princípio soberano de que, se não pela sua raça, pelo menos pelo seu Deus, lhe estava destinado o domínio de todos os outros. Foi ontem, em 1955, naquela que dizem ser a terra da grande promessa, os Estados Unidos: Emmett Louis Till, um rapaz de 14 anos, foi raptado e brutalmente linchado por um grupo de homens, num lugar perto de Money, Mississípi.
Espancado — desfigurado — até à morte, o seu corpo atirado ao rio Tallahatchie de onde seria recuperado ao fim de três dias. Culpa: um rapaz negro tinha mandado um piropo à jovem mulher branca no balcão da mercearia, deste modo violando uma das segregacionistas leis de Jim Crow. O racismo em todo o seu esplendor.
Emmett Till vivia com a mãe, Mamie, em Chicago, e estava a passar 15 dias de férias com a família do Mississípi. Não tinha noção plena do ódio racial que lá se vivia — pagou com a vida. A mãe exigiu que o seu corpo fosse expedido para Chicago, onde lhe fez um funeral — da caixão aberto. As imagens do rosto do rapaz horrorosamente mutilado correram céleres pelo jornais, sobretudo da comunidade negra, mas não só, lembrando, à evidência, a situação social no estado do Sul. Milhares de pessoas desfilaram pela câmara ardente, numa manifestação de solidariedade, dor e cólera.
Etapa seguinte do drama: procedimentos judiciais, na comarca onde o crime fora cometido. Mamie vai a Money testemunhar em tribunal. Ela sabe que é ínfima a probabilidade de conseguir justiça. Mas vai. A cena do seu depoimento é um dos grandes momentos dessa zona do filme, território de pura impiedade, infinda capacidade de indignação. Levados a juízo, os assassinos de Emmett seriam absolvidos — por um tribunal presidido por um juiz branco e com um júri integralmente branco.
É esta história hedionda que a realizadora Chinonye Chukwu resolveu pôr em “Justiça para Emmett Till”, neste tempo em que o supremacismo branco volta a ser altivo no país de Donald Trump. E não o faz em modo incendiário, mas com a contenção seca de quem não precisa de se pôr aos gritos para mostrar que tem razão. Não mostra, por exemplo, o assassínio do rapaz, não explora a violência, não espetaculariza o ódio.
A simples descrição dos factos que se passaram por detrás daquela porta fechada e a pintura dos comparsas fala por si. E centra-se, essencialmente, na figura da mãe (interpretada com grande carga dramática por Danielle Deadwyler), a transformar a sua incomensurável dor e perda num combate por justiça. Primeiro tentando a condenação dos culpados — e, repito-me, é brutal toda a zona do filme dedicada ao julgamento e ao quadro humano em que decorre. Depois, fazendo com que o crime, mesmo se judicialmente impune, não resvalasse para o esquecimento, antes servisse de acicate à longa luta pelos Direitos Civis que, nesse mesmo ano, acelerou.
A atriz Danielle Deadwyler no papel de Mamie Till
Mamie Till, até então anónima mãe de família, tornar-se-ia uma ativista no movimento que havia de mudar a América. Pelo menos nas leis, na alma talvez não tanto, como eventos recentes e iniciativas legislativas em estados mais conservadores demonstram. O filme mostra essa passagem sem tocar fanfarras — aliás, olha o mundo da política, mesmo dos seus membros negros mais influentes e ardorosos, como um processo de concessões e compromissos, o pragmatismo à frente das convicções, a eficácia sobrepondo-se aos princípios. Não é exaltante ver.
Só em 2022 foi aprovada pelo Congresso a lei que define o linchamento como crime de ódio federal e o pune com severidade. Ficou conhecida como o Emmett Till Antilynching Act.
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