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“Os Fabelmans”: a história de Steven Spielberg que valeu ao próprio o triunfo nos Globos de Ouro

“Os Fabelmans”: a história de Steven Spielberg que valeu ao próprio o triunfo nos Globos de Ouro
Dave J Hogan/Getty Images

O novo filme, que traça os primeiros 20 anos de vida de Steven Spielberg - quando a paixão pelo cinema e as dores de crescimento se entrelaçaram para sempre -, foi distinguido com os prémios de Melhor Filme e Melhor Realização nos Globos de Ouro, entregues na última noite em Los Angeles. Os atores Michelle Williams e Paul Dano falaram-nos sobre “Os Fabelmans”

Se a vontade fosse contar esta história pelo início, esse início teria que coincidir com o fascínio do miúdo Sammy Fabelman (Gabriel LaBelle) por um certo filme de Cecil B. DeMille estreado “for the happiness of the world...”. Assim rezava o trailer de “O Maior Espetáculo do Mundo” na época, corria o ano de 1952 e tinha então o petiz seis anos. Uma cena do filme de DeMille em que um comboio colhia um automóvel seria reproduzida por Sammy vezes sem conta com os brinquedos de casa, prova de que a dita deixara marca e que a vida dele, depois da descoberta do cinema, nunca mais seria a mesma vida.

É também com a candura que lhe é conhecida que Spielberg inventou estes Fabelmans para falar de si próprio, da sua vida, da vida dos seus pais e, não menos importante, do papel do cinema em tudo isto. E é curioso: o filme ora parece querer conquistar, pelo desvio do nome, uma cautelosa distância face à autobiografia, ora não hesita em reproduzi-la nos mais ínfimos detalhes (leia-se o que nos diz Michelle Williams mais à frente sobre um par de brincos).

Temos portanto o pai Burt (Paul Dano), engenheiro eletrotécnico, a mãe Mitzi, que deixou carreira artística para dedicar-se aos quatro filhos, assim como Sammy e as três irmãs mais novas a completarem esta família de descendentes de judeus ucranianos nos EUA. Sammy sonha em fazer filmes mesmo sem saber ainda como eles são feitos. Ainda lhe falta penar um bom bocado até alguém lhe perguntar onde fica a linha do horizonte.

Queimando algumas etapas, daqui damos um salto para a fratura grave que existe em “Os Fabelmans” e para um momento de cinema que vai doravante figurar entre os melhores que Spielberg filmou. É certo que o guião que ele escreveu uma vez mais com Tony Kushner está sempre preso aos olhos do alter ego Sammy e ao relato coming of age.

A dada altura o espectador receia, aliás, que o classicismo desse relato se limite a alinhavar cena atrás de cena, assim como quem folheia o mesmo álbum de memórias pela enésima vez. Mas depois chega aquele momento — e é um trauma. O filme sobe disparatadamente de importância com ele. Descobrimo-lo por acaso, numa muito subtil suspeita e ao mesmo tempo que um Sammy já adolescente o descobre, ao montar na moviola aquela partie de campagne familiar de um dos seus filmes amadores.

Embate com a realidade

Sammy nota que a mãe e o melhor amigo do pai, Bennie (Seth Rogen) — pessoa que ele sempre tratou por ‘tio’ — trocam em segredo uma carícia demorada que a câmara registou. Não acredita, puxa a película atrás, revê com mais atenção o muito forte indício da infidelidade materna. É o instante em que o cinema, em vez de o fascinar, vai começar a aterrorizá-lo: um choque frontal com a realidade. A personagem de Michelle Williams e o relacionamento dela com o Burt de Paul Dano ganham o filme a partir daqui e levam “Os Fablemans” para uma crueza emocional tão consistente que quase reduz a anedota ligeira tudo o que depois gravita à volta de Sammy (a namorada católica fervorosa, o bullying no liceu, etc.).

“Uma das coisas mais bonitas daqueles pais é que é possível haver amor na separação. Esta ideia já era evidente no argumento e creio que nós, atores, soubemos cuidar dela”

Paul Dano

Ator

A grande qualidade do filme vem da gestão deste quadro de emoções quando a relação extraconjugal dela é finalmente assumida, já a família se mudou de Cincinnati para a Califórnia. É pena não termos ouvido Spielberg falar deste aspeto de viva voz, o privilégio das entrevistas foi desta vez único (ver entrevista na pág. 42). A pergunta foi contudo dirigida por videochamada a Michelle Williams e a Paul Dano e foi Paul quem nos disse que “uma das coisas mais bonitas daqueles pais é que é possível haver amor na separação. Esta ideia já era evidente no argumento e creio que nós, atores, soubemos cuidar dela.”

Michelle, por seu lado, virou-se para a música quando lhe coube responder à pergunta, durante a rodagem estava sempre a pensar “naquela canção do Neil Young, ‘Only Love Can Break Your Heart’. As separações só são tristes quando o amor existe. E o amor não deixou de existir para eles, mesmo quando se divorciaram. Simplesmente, mudou de forma. O Arnold e a Leah [verdadeiros nomes dos pais de Spielberg] mantiveram uma amizade profunda até ao fim dos seus dias, ele morreu aos 103 anos, ela aos 97. A história deste filme é apenas uma fase intermédia da longa história das suas vidas.”

Atriz e ator não recearam a missão que aceitaram levar a cabo, nem mesmo quando Steven pediu a Michelle que, numa determinada cena, rodasse a cabeça de uma certa maneira, tal como a mãe fazia quando era questionada. “O Steven tinha toda a informação do seu lado, como é óbvio, estava constantemente a acrescentar novas camadas de experiências e de recordações, como se fossem presentes”, continuou Michelle. “Essas camadas desbloquearam momentos em nós. E acabaram por transformar as cenas. Às vezes eram só detalhes: ‘Gostava que pusesses os brincos da minha mãe...’ Congratulámo-nos com estas subtilezas.”

Paul Dano acredita que Spielberg cresceu a tentar equilibrar-se entre “o mundo sonhador da mãe e o mundo objetivo e pragmático do pai.” Quanto a filmes de Spielberg favoritos para um e para outro, ela realça “O Império do Sol”, que a marcou porque o viu quando era “um bocadinho nova de mais, acho que foi o meu primeiro filme adulto.” Já Paul escolheu “Jurassic Park”, ainda se lembra que a mãe o foi buscar à escola mais cedo no dia da estreia para ir a uma matiné, “as sessões da noite já estavam esgotadas. É uma grande memória. Foi o primeiro filme que me fez faltar às aulas. E ainda gosto muito dele!”

“Os Fabelmans” acaba com uma piada que, à data em que se publica, já não é surpresa para ninguém. Aliás, os cinéfilos conhecem-na de cor e há décadas de “Directed by John Ford”, documentário de Peter Bogdanovich sobre Ford. Trata-se, tintim por tintim (com ligeiras nuances) da história que nesse filme o próprio Spielberg contava sobre o seu primeiro (e único) encontro com John Ford no escritório de um estúdio de Hollywood. A particularidade desta encenação é que, quem faz de Ford (e faz com graça), é David Lynch.

Percebe-se a homenagem e não se põe em causa a franqueza de Spielberg que, desta forma, com um gag, conclui “Os Fabelmans” da mesma maneira como o começou: com uma cinefilia cândida. Suspeita-se até que Spielberg, ao invés de intuir algum ensinamento da ‘lição do mestre’ nestes últimos 50 anos, terá preferido cristalizar a sua espontaneidade, deixando à moda de DeMille, “for the happiness of the world...”, o episódio a novas gerações. Mas que ninguém se engane: o melhor de “Os Fabelmans” não está no início. Nem no fim. O melhor é o meio, com a Mitzi de Michelle Williams e o Burt de Paul Dano. Pouco nos importa se representam mãe e pai do realizador, quanto a nós, são simplesmente grandes personagens.

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