5 janeiro 2023 10:48
Mais de 30 anos após “Monsieur Hire” (1989), Leconte regressa à literatura policial de Simenon para nos oferecer uma adaptação de um dos romances da série Maigret. Quem aqui encarna o célebre inspetor é Depardieu, cuja presença mastodôntica, gestos trôpegos e semblante carregado constituem os únicos pontos de interesse da câmara, a tal ponto que o filme quase poderia passar por uma espécie de documentário sobre o corpo do ator.
Esta fixação encontra tradução formal no modo como Leconte se recusa a contextualizar o protagonista na sua geografia (a Paris de meados do séc. XX, sempre demasiado imprecisa), insistindo por sistema em enquadrá-lo em plano aproximado. A opção por esta escala de planos implica o cerramento do espaço ótico em torno do corpo de Depardieu, cuja interpretação evasiva e retraída tanto pode decorrer do seu desejo de sugerir os sofrimentos inarticulados da personagem, como do seu simples desinteresse: são vários os momentos em que sentimos que ele gostaria de estar noutro sítio.
A ser real, esse desinteresse justifica-se em virtude do que o ator é forçado a suportar: um whodunnit decorativo e pintado em cores ponderosas (diferentes matizes de cinza e pouco mais), que gira à volta das inquirições feitas por Maigret para tentar resolver o caso da rapariga morta do título.
Nesse movimento o que mais importa é garantir uma passagem tão suave e lógica quanto possível do ponto A para o ponto B, sem perturbar o desenrolamento mecânico da narrativa. Daí que só haja aqui uma ideia de mise en scéne, que não é das mais felizes, nomeadamente: aquela que procura exprimir as aproximações à verdade de Maigret por via de repetidos zoom in (a tradução do psicológico pelo ótico é tão literal que chega a desconcertar). Que, juntamente com as cenas em que Maigret conversa em casa com a mulher, essas sejam as únicas em que, mais do que parecer vivo, o filme parece não estar morto, é algo que diz bem da vitalidade do projeto.