Cinema

“Poeta”, um filme inteligente sobre o preço da liberdade e o valor da memória

31 dezembro 2022 12:19

Darezhan Omirbaiev realiza um drama, com Aida Abdurakhman, Klara Kabylgazina e Yerdos Kanaev nos principais papéis. O crítico Francisco Ferreira dá-lhe três estrelas

31 dezembro 2022 12:19

Observador arguto das contradições, da crueldade, mas igualmente da ironia da sociedade cazaque, Darezhan Omirbaiev, rosto maior do cinema de um país que não tinha propriamente uma ‘identidade’ durante os tempos da União Soviética, procura em “Poeta” uma experiência cinematográfica mais coral e distante de um guião convencional. “Poeta” não deixa de nos falar do Cazaquistão, mas é porventura o filme de Omirbaiev menos circunscrito a essa origem.

Curiosamente, é o primeiro a ter tido estreia comercial em Portugal, pese embora a reputação de obras como “Kairat” ou “Kardiogramma”, que vincaram o nome deste autor desde os anos 90. Começamos por seguir um editor de livros e poeta nas horas vagas, Didar, de 40 anos, e a degradação progressiva da língua cazaque que ele e os seus pares testemunham nos tempos que correm — estes tempos em que o inglês reina como um déspota sobre todos os idiomas. Das inquietudes atuais do sisudo Didar, perplexo com o estado do mundo e, por isso mesmo, personagem com uma certa comicidade, Omirbaiev transporta-nos para um filme de época (coisa rara na sua obra) em que somos ‘apresentados’ a Makhambet Otemisuly (1804-1846) que, além de nómada e líder político, foi poeta devoto à tradição oral e aos ensinamentos e ladainhas que passavam de geração em geração. Nada deixou escrito e acabou assassinado por recusar submeter-se aos interesses colonialistas russos no século XIX. Balanceando estas duas linhas narrativas (o presente enquanto eco do passado), comparando a vivacidade guerreira de Makhambet no século XIX com a submissão impotente de Didar num século XXI saturado de imagens e de ecrãs, Omirbaiev deixa-nos um filme inteligente sobre o preço da liberdade e o valor da memória para um povo que se sente intelectualmente atacado no seu âmago mais profundo. E contudo “Poeta” não é pessimista, guarda uma réstia de esperança num amanhã melhor, acredita que um espectador basta para que tudo refloresça. Vale muito a pena descobri-lo. / Francisco Ferreira