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Chegaram os canibais, com “Ossos e Tudo”. Timothée Chalamet volta ao trabalho com o realizador de “Call Me By Your Name”

Chegaram os canibais, com “Ossos e Tudo”. Timothée Chalamet volta ao trabalho com o realizador de “Call Me By Your Name”

Ficção de horror tintada de romantismo, assinada por Luca Guadagnino, “Ossos e Tudo” é um dos mais originais filmes do ano

Não é vício, pecado, fraqueza de alma ante a imperiosidade do corpo. Também não é uma doença ou uma perversão adquirida, nem vírus nem más companhias têm culpas no cartório. É, antes, algo que faz parte da identidade, pulsão que vem de dentro, tão incontrolável como o instinto de sobrevivência. Contudo, não é coisa que esteja ali, presente, todos os dias. Podem passar-se anos sem que venha. Mas, quando irrompe, tem a fúria de uma erupção, a obnubilação de consciência de um orgasmo. Quando acontece eles precipitam-se, como feras, na voracidade de comer carne humana. Fora isso, os canibais até são gente decente, os que são, evidentemente; porque há de tudo, como nos restantes seres humanos.

Têm, evidentemente, extrema dificuldade em levar vidas normais. São, por instinto e aprendizagem de vida, solitários, embora, aqui e ali, emparelhem com outros seus semelhantes. É que eles conseguem identificar os iguais, reconhecem-se pelo cheiro, recurso que, com a idade, apuram até serem capazes de seguir rastos. O cúmulo da intimidade é alimentarem-se juntos, o momento em que a humanidade corpórea se funde em algo de pavoroso e inconfessável. Não, eles não ganham a forma de lobisomens, é outra coisa que não vou pôr-me a contar aqui, não me calha desmanchar prazeres. Digo só que eles devoram a presa de quatro, como as feras.

Este filme que o italiano Luca Guadagnino foi rodar na América profunda (Kentucky, Ohio), situando-o nos anos 80 da era-Reagan — em continuidade à obra de um cineasta para quem a Itália é muito pequena e que sempre olhou, para lá dos Alpes, para lá do Atlântico, para o mundo de língua inglesa — é uma variação bem congeminada de um género clássico, o filme de vampiros. Dessa matriz colhe uma ideia essencial que está presente nos seus melhores exemplos (do “Nosferatu” de Murnau ao “Drácula” de Coppola): a solidão dos malditos, a sua imensa e gorada sede de amor.

O seu olhar centra-se em Maren/Taylor Russell, uma jovem de 18 anos que o pai abandona depois do que deve ter sido uma série de horríficos episódios ao longo dos seus anos de crescimento, facto que os obrigara a errar de terra em terra quando a verdadeira natureza de Maren emergia e a polícia entrava em modo de captura. A história começara muito lá atrás, entre ela e uma babysitter… Deixada só — e julgando-se a única da sua condição — a rapariga parte em busca da mãe de que sempre ignorara qualquer rasto. Quando a encontrar, se a encontrar, não é certo, todavia, que haja nela regaço e acolhimento.

“Ossos e Tudo” não é um filme de género, puro e duro, embora vá agradar aos apaniguados das ficções de medo. É uma obra híbrida, mestiça, tão insinuante quanto a aura de Chalamet

No caminho vai conhecer um outro canibal muito mais velho, Sully/Mark Rylance, que lhe revela não estar só no mundo, lhe mostra como se alimentar sem associar essa necessidade com a prática do assassínio e lhe propõe continuada companhia. Nada que Maren deseje. Mais tarde depara com o rebelde e jovem Lee/Timothée Chalamet, cuja pose cínica e egoísta mascara um âmago a precisar de ternura. É então que Luca Guadagnino começa a tintar o seu horror movie de uma fina camada de romantismo em fundo de desespero, estranha e imprevisível mescla que impregna o filme de singularidade.

“Ossos e Tudo” não é um filme de género, puro e duro, embora vá agradar aos apaniguados das ficções de medo. É uma obra híbrida, mestiça, tão insinuante quanto a aura de Chalamet — ídolo para carrear raparigas jovens para os cinemas — e tão sinistra quanto a melíflua composição de Mark Rylance (cujo trabalho no filme, mesmo se episódico, é tão espantoso que quase garante uma presença na temporada dos prémios que, dentro de poucas semanas, arranca). Tem morte e carnificina? Tem. Mas também tem uma história de amor entre dois danados da Terra que, como os apaixonados em fuga em “Filhos da Noite” de Nicholas Ray (1948), o casal de “Bonnie e Clyde” de Arthur Penn (1967) ou os amantes malditos de “Os Noivos Sangrentos” de Terrence Malick (1973), não encontram poiso onde descansar.

Ponhamos a coisa neste pé, sem fazer ironia nem tentar trocadilhos: “Ossos e Tudo” não é para todos os estômagos. É uma ficção de horror que sabe os fios com que se tecem pavor e repulsa e também como se enleia o espectador para nele despertar misericórdia. Duplamente galardoado no Festival de Veneza — Leão de Prata (Melhor Realização) para Guadagnino, Prémio Marcello Mastroianni (Melhor Ator ou Atriz Jovem) para Taylor Russell — seria lastimável que não encontrasse público português que o admirasse em todas as suas dimensões.

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