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Anti-Disney, desobediente, extravagante. Assim é o “Pinóquio de Guillermo del Toro”

O realizador Guillermo del Toro, retratado a propósito do seu "Pinóquio"
O realizador Guillermo del Toro, retratado a propósito do seu "Pinóquio"
Jason Schmidt/NETFLIX

O novo filme de Guillermo del Toro só viu a luz quando a Netflix pagou o que ninguém mais quis pagar. Mas a sua exuberância 'desviou-o' para uma estreia em grande - nas salas de cinema, faz esta quinta-feira uma semana - antes de na próxima chegar ao streaming. É um prodígio técnico em stop-motion, narrativamente vai longe de mais

Anti-Disney, desobediente, extravagante. Assim é o “Pinóquio de Guillermo del Toro”

Francisco Ferreira

em Marraquexe

Só o título já é todo um programa! Este novo filme de Guillermo del Toro não é apenas 'mais um' Pinóquio. Nem a enésima adaptação cinematográfica do livro infantil de aventuras que Carlo Collodi publicou na segunda metade do século XIX. No que ao cinema diz respeito, já tínhamos o “Pinóquio” da Disney dos anos 40, o “Pinóquio” da fabulosa série de Luigi Comencini dos anos 70, o “Pinóquio” de Roberto Benigni, mais recentemente o de Matteo Garrone, também o de Robert Zemeckis – e aqui se jura que não se está a citar nem metade, nem um terço, de todos os que existem!

Mas este filme é outra coisa, é o “Pinóquio de Guillermo del Toro”. Com o cineasta a gravar, para que todos leiam, o seu próprio nome no título. Falta de modéstia? Nem é tanto assim. “Pinóquio” é o filme que o mexicano confessou ter desejado fazer uma vida inteira, chegou a dizer que a sua obra ficaria incompleta sem ele, batalhando anos a fio para o conseguir.

É um projeto que data de 2008 e que foi originalmente preparado para ser lançado em 2013 – há quase dez anos! - mas os estúdios foram roendo invariavelmente a corda e, nessa altura, Del Toro não tinha ainda sido coroado a Óscares pela Academia. Del Toro ambicionou um filme em grande e não descansou nem fez concessões até atingir o objetivo.

E se foi a Netflix quem permitiu ao cineasta concluir a empreitada (numa assinatura a quatro mãos com o animador Mark Gustafson), diga-se que o filme não dispensou a pompa nem a circunstância de uma grande festa de cinema em sala a condizer, como a que aconteceu no arranque do Festival de Marraquexe, o maior dos certames africanos, de regresso após a pandemia. Tal como aconteceu em Marrocos, “Pinóquio de Guillermo del Toro”, apesar da chancela Netflix, está agora em seletos ecrãs de cinema nacionais. Caso para dizer: o streaming que espere. Este filme não foi feito a pensar nele.

Por não ter experiência direta em claymation - técnica particular do stop-motion que recorre ao uso da plasticina – Del Toro chamou Gustafson para a realização e suspeitamos que a marca do último no resultado final se tornou decisiva.

DESOBEDIENTE E ANTI-DISNEY

Há essencialmente duas perspetivas gerais para pegarmos em “Pinóquio de Guillermo del Toro” e a primeira delas, a da animação, convence de tal forma que não é fácil alguém encontrar argumentos contra ela. Este filme é, de facto, um prodígio técnico e uma data no cinema animado em stop-motion. Por não ter experiência direta em claymation - técnica particular do stop-motion que recorre ao uso da plasticina – Del Toro chamou Gustafson para a realização e suspeitamos que a marca do último no resultado final se tornou decisiva.

É óbvio que um filme destes necessita de recursos digitais mas a sua essência é material e orgânica, depende de todo um artesanato de desenho, de pintura e de escultura com diferentes escalas. É uma aventura física e essa materialidade é quase tangível no grande ecrã.

Del Toro não conseguiu estar em Marraquexe, enviou mensagem gravada à audiência e contou que esta história de pais e filhos está afetivamente ligada à sua infância, acrescentou ser um filme sobre a desobediência e o facto de que não deveríamos deixar de ser quem somos para sermos amados. E a palavra desobediência tem aqui uma especial importância porque, goste-se ou não do que Del Toro fez, este “Pinóquio...” é um filme de autor por inteiro.

O nosso herói de madeira, cujo nariz cresce quando ele mente, é especialmente doidivanas. Gepeto, o pai de Pinóquio e 'criador da criatura', é um beberracho que se atormenta por causa do filho que perdeu antes de pegar, furioso, naquele bloco de madeira do qual Pinóquio é feito. A personagem do Grilo Falante, por exemplo, ele que fala pela consciência do herói e o ajuda a escolher o que é certo e o que é errado, tem no filme de Del Toro muito maior preponderância do que em versões recentes.

Ou seja: “Pinóquio de Guillermo del Toro” é um filme com vontade de nos provocar, neste aspeto está muito mais próximo de Tim Burton que da Disney – e este choque torna-se por demais evidente na mesma semana em que a Disney, assim quis o calendário, estreia nas salas “Estranho Mundo”, uma das animações mais desinspiradas de toda a história do estúdio.

Tem coisas a mais, este “Pinóquio” que Del Toro agora nos dá? Tem, infelizmente. Filme de Guillermo sem aquele 'barroquismo' a que ele habitou a audiência não seria filme dele. E há uma saturação de elementos no guião, que se sabe ter sido trabalhado até à exaustão e que certamente não se desembaraçou de coisas que o poderiam ter tornado mais eficaz. A opção, por exemplo, de fixar a história original de Collodi na Itália fascista de Mussolini e nos anos 30, colocando a história inteira que todos conhecemos a rodar em torno daquele eixo (Pinóquio aliciado para ser o rapaz fascista que não se adequa ao caos do seu comportamento), é mais do que discutível.

Del Toro não resistiu a voltar ao trauma do fascismo que já havia tratado, entre outros filmes, em “O Labirinto do Fauno” (neste caso, era a Espanha franquista que estava em pano de fundo) mas no caso de “Pinóquio”, a imaginação destravada, toda esta vontade de tratar uma história imortal com nova moldura, é gesto modernaço que também resvala para a caricatura (algo que, convenhamos, é associável ao fascismo italiano e à figura de Mussolini em particular). Mais feliz - e isso causou surpresa - é a tentação pelo filme musical que “Pinóquio de Guillermo del Toro” também é, pelas várias canções que o filme apresenta. Primeiro estranha-se, depois a ousadia convence.

Num cômputo geral, há que sublinhar a rebeldia das personagens de Del Toro face à ideia que a audiência tem delas. A tentação de Del Toro pelo grotesco não é coisa que vá agradar a todos, mas neste caso a técnica da animação legitima-a, à medida que este filme torce o olho a todo este rame-rame cobarde de convenções que tomou conta da indústria. Esqueça-se o Pinóqio fofinho de outros tempos: este é rústico, rugoso, mal educado, encanta e confunde, está mais próximo da humanidade.


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