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De Trás-os Montes à procura do Oscar: "Salomé dos espíritos", um filme carregado de misticismo e afetos

Lua Michel é a menina que interpreta Salomé. A jovem atriz é filha de Cristèle, a realizadora
Lua Michel é a menina que interpreta Salomé. A jovem atriz é filha de Cristèle, a realizadora
D.R.

“Alma Viva”, o candidato português ao Oscar de Melhor Filme Internacional, foi rodado em Trás-os-Montes entre o misticismo e a memória afetiva. É um passo muito firme da cineasta franco-lusa Cristèle Alves Meira. Estreia-se hoje nos cinemas

Quando realizou a sua primeira curta-metragem de ficção, a muito conseguida “Sol Branco”, rodada em 2014 numa aldeia do concelho de Vimioso, nordeste transmontano, Cristèle Alves Meira (n. 1983, Montreuil) já tinha “Alma Viva” como ponto de chegada. Esta estreia na longa partilha com a curta citada o facto de ter como protagonista uma menina que ainda nem tem dez anos.

Cristèle conhece aquela aldeia materna desde o berço, cresceu numa família de emigrantes portugueses em França que, como tantas outras, se habituou a regressar à terra para passar férias de verão. Mas aqui não há ‘gaiolas douradas’ nem a menor ponta de caricatura da situação social em causa: pelo contrário, quando o filme abre, com a cena de um velório observado por um vidro fosco, já é Salomé que nos conduz com os seus arregalados olhos verdes. Em “Sol Branco”, uma menina fugia apavorada de um cemitério pela visão do fantasma de uma mulher que a câmara deixava fora de foco.

Em “Alma Viva” é a avó de Salomé que morre por maldição de uma vizinha (fica a ameaça no ar), até que o espírito vem depois possuir a neta e exigir vingança. Lua Michel, a menina que interpreta Salomé (e que é filha de Cristèle), vai ocupar o centro de praticamente todos os planos do filme. E é pelo seu olhar de criança que aquele quotidiano transmontano começa subtilmente a desbloquear uma aura de misticismo e de fantástico, toda uma linhagem feminina que transgrediu de uma geração para outra e que, por isso mesmo, está conotada com o esoterismo, com a feitiçaria. Acontece que a fronteira entre a realidade e a ficção deste filme é uma linha invisível. Tudo o que é crença e parte obscura une-se organicamente àquela comunidade e ao dia a dia da aldeia.

A imersão de intérpretes profissionais (Ana Padrão, notável) e não-profissionais naquele espaço também reforça esta ideia. E aqui passamos a palavra a Cristèle, que nos contou em maio, na véspera da estreia do filme em Cannes, na Semana da Crítica (que já antes exibira as curtas “Campo de Víboras” e “Invisível Herói”): “Doseei sempre na mise en scène o fantástico com muita cautela, sem cair no filme de género, embora recorrendo, com ponderação, às suas ferramentas. O fantástico surge no meu filme de uma forma minimalista e despojada. As crenças são indissociáveis da comunidade — parti deste princípio. E como o ponto de vista é o de uma criança, basta por vezes um céu encoberto, um rufar de tambor ou o som de uma coruja para que estes elementos se tornem sobrenaturais.”

“Alma Viva” deixa-nos a sensação de ter demasiados fios de novelo para desenlear. Confrontam-se famílias, os emigrantes que partiram e ascenderam socialmente com aqueles que ficaram, entregues ao seu complexo de inferioridade. O espaço é violento para quem o habita e para quem o visita: Trás-os-Montes filmada como região mítica, “quase uma coisa de faroeste”, contou também Cristèle. Enquanto isto somos tentados por histórias que podiam ser as de São Jorge e o Dragão, naquele mês de agosto terrível, sem nada de querido. “Alma Viva” é uma esponja, está saturado de fascínio por todos os movimentos de vida que o rodeiam.

É uma rasteira compreensível para uma longa de estreia e, francamente, uma falha menor perante tudo o que há a saudar. 1) O que Lua Michel dá ao filme, ela que, sem nunca ter lido o argumento, é conduzida pela intuição, até exclamar, com a sua espontaneidade de criança, que “não quero ser mais bruxa”. Cristèle falou-nos de como a descoberta do cinema de Pialat condicionou a sua relação com o cinema e, por falar em crianças, nomeou “Cria Cuervos”, de Saura, como uma das suas maiores influências. 2) O retrato antropológico da aldeia em que o filme se passa, de tal forma é ele atento à riqueza dos detalhes. 3) Atente-se também à mistura de som, de uma complexidade invulgar. “Ainda bem que fala disso”, interrompeu Cristèle, “as conversas com a imprensa costumam começar e acabar com a imagem. No som estão as minhas memórias de infância. O ruído intenso dos insetos, o uivo dos lobos que eu gostava de ouvir em criança. É um som trabalhado por memórias afetivas. Não é real, foi construído, existe para este filme, é um som de ficção.”

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