“Sabor” é primeira longa-metragem de Bao Le - a utopia dos exaustos apresenta-se em sala

Na senda de Tsai Ming-Liang e Brillante Mendoza, chega-nos uma primeira longa vietnamita que mergulha nas vidas do lumpemproletariado de Saigão
Na senda de Tsai Ming-Liang e Brillante Mendoza, chega-nos uma primeira longa vietnamita que mergulha nas vidas do lumpemproletariado de Saigão
Embora nos chegue de uma geografia pouco frequentada pela programação das salas portuguesas (a do Vietname), “Sabor”, primeira longa de Bao Le, instala-nos num território cinematográfico facilmente reconhecível. De facto, dado o modo como reduz ao mínimo indispensável o seu aparato formal para tentar fazer jus à penúria material dos corpos que retrata — os de meia dúzia de figuras operárias que se vão movendo na base da pirâmide económica —, este filme traz à cabeça o ‘cinema povero’ de Tsai Ming-Liang, Pedro Costa ou Brillante Mendoza.
Trata-se de influências mais ou menos assumidas (“O Sabor da Melancia” será evasivamente citado), que se fazem sentir desde as sequências iniciais. Nelas, desaguamos num bairro de lata de Saigão — leia-se: num labiríntico e soturno amontoado de barracas e vielas, toscamente alicerçadas sobre um curso de água —, para seguir o quotidiano de Bassley: um nigeriano na casa dos 30 que, a julgar pelas aparências, trabalha como ajudante num esquálido salão de beleza (vê-lo-emos, ora a limpar o chão, ora a massajar as costas das clientes).
Tudo o que sobre ele ficaremos a saber, ao longo deste filme isento de diálogos ou movimentos de câmara, é aquilo que o próprio nos revela, no contexto de um dos raros monólogos que pontuam a narrativa (falando então em iorubá para uma mulher vietnamita que não o compreende). Nomeadamente, que ele abandonou a sua Nigéria natal, deixando para trás um filho de 9 anos, na esperança de prosseguir a sua carreira como jogador de futebol num clube vietnamita, do qual foi dispensado quando se lesionou numa perna. Esse sonho desfeito será evocado por via de uma série de vinhetas semioníricas: aquelas que nos infiltram no interior de um lúgubre balneário, onde os corpos de Bassley e dos seus colegas se prestam a coreografias mudas que, invariavelmente, os projetam como simples animais ou mercadorias (eles correm em círculos entre quatro paredes, são medidos e pesados pelos técnicos da equipa...).
Melhor sorte não têm as figuras com as quais o protagonista se cruzará no decurso do filme: as de quatro operárias de meia idade (todas elas interpretadas por não atrizes), que depressa se encerrarão com ele naquilo que parece ser uma fábrica abandonada, impermeável à luz do sol, e sempre pintada em castanhos e cinzentos metálicos. Nesse espaço quase abstrato, as personagens improvisarão uma vida à margem da ditadura do trabalho: nuas e munidas apenas do bastante para assegurar a sua sobrevivência e um módico de conforto (alguns víveres, uma cama, uma televisão…), elas dedicar-se-ão a perseguir os pequenos prazeres que o seu dia a dia não consente — lavar o cabelo, preparar modestas refeições em conjunto...
O grupo ensaia então uma utopia que não resiste à exaustão dos seus corpos: tudo se passa como se eles se descobrissem esvaziados do seu potencial de insurreição, desdobrando-se em gestos de fuga que cedo ficam reféns da incomunicabilidade ou do automatismo (veja-se aquela mecânica sessão de karaoke, em que as vozes parecem procurar em vão uma linguagem que seja capaz de exprimir a sua tristeza). Aquilo que por este meio a realização de Lao Be tenta induzir, tanto nas personagens como no espectador, é uma espécie de transe weerasethakuliano (Lee Chatametikool, o responsável pela montagem, é aliás um colaborador regular de Apichatpong) que prima pelo seu carácter elegíaco, ou melhor: pelo seu desejo de elevar a melancolia daqueles que, apesar de já nada esperarem, fazem questão de resistir à sua extinção. Bela estreia.
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