DocLisboa chega aos 20 anos com o colonialismo e o Brasil em destaque
“Black Girl”, de Ousmane Sembène, figura na retrospetiva A Questão Colonial
A 20ª edição do DocLisboa começa esta quinta-feira e apresenta o melhor do cinema documental até dia 16. Nos 20 anos do evento, Porto e Lisboa estão juntas na abertura e encerramento. A programação da 20ª edição reafirma o que define o festival há duas décadas: questionar.
Catarina Brites Soares
Nas Histórias há sempre feridas abertas: as que nunca se fecharam e as que se reabriram. É aí que o DocLisboa sempre quis ter o dedo. Não é ao acaso que A Questão Colonial e o Cinema Marginal do Brasil, pelos olhos de Carlos Reichenbach, são os temas fortes do festival que arranca esta quinta-feira e termina a 16, numa edição com mais de 280 filmes — 47 estreias mundiais e 28 obras nacionais. As duas retrospetivas ocupam grande parte do evento. Mas, se o que procura são respostas, não as vai encontrar, avisa o codiretor. No DocLisboa levantam-se questões, reflete-se e pensa-se o mundo, sem limites e tabus e de todas as perspetivas. É assim há 20 anos e assim continuará, promete Miguel Ribeiro.
“Questão Colonial” dá nome à secção que volta ao tema no evento. “Há muito tempo que esta questão está presente e de várias formas no DocLisboa. Através do cinema contemporâneo, dos registos históricos e trazendo novas formas de ‘colonialidade’. Não chamamos a esta retrospetiva ‘pós-colonial’ por isso. Parece-nos que o exercício agora é pensar sobre as persistências e continuidades através de exercícios coloniais”, explica Ribeiro.
“É o momento para se ter esta conversa com os filmes que foram gravados naqueles lugares [antigas colónias]. Muitos caíram no esquecimento”
Miguel Ribeiro, diretor do DocLisboa
Este ano, mostram-se filmes da História recente sobre o continente africano e antigas colónias portuguesas e francesas, que têm estado fora do debate e que foram gravados com o propósito claro de criar comunidades e lugares de discussão, e essa, acrescenta, é uma proposta “nova, necessária e atual”. “Os Comprometidos”, de Ruy Guerra, sobre o julgamento dos moçambicanos que lutaram do lado do Estado português, é um dos que integra a categoria. “É o momento para se ter esta conversa com os filmes que foram gravados naqueles lugares. Muitos caíram no esquecimento e têm dados relevantes para os debates de hoje”, insiste.
O fim da Guerra da Argélia — que coincide com a decisão do Estado Novo de avançar para a Guerra Colonial e assinala o termo das colónias francófonas — é o ponto de partida do diálogo entre os dois países. Portugal e França não só coincidem no tempo no que toca a guerras e independências coloniais como são protagonistas da Temporada Portugal/França 2022, a decorrer em simultâneo nos dois Estados. “Respondemos a esta proposta com uma discussão profunda que envolve os países”, vinca o codiretor do DocLisboa, que realça o papel do cinema na criação de novas identidades e territorialidades no que foram as colónias portuguesas e francesas.
E agora, Brasil?
A par da retrospetiva que reúne René Vautier, Margarida Cardoso, José Cardoso, Licínio Azevedo, Assia Djebar e a dupla Filipa César e Sónia Vaz-Borges, entre outros nomes, há outra dedicada a Carlos Reichenbach (1945-2012) e ao Cinema Marginal. Também conhecido como Cinema de Invenção ou Udigrudi, o movimento artístico nasceu nos anos 60, em plena ditadura militar brasileira, em resposta à instabilidade no país.
O movimento cinematográfico e o realizador que o protagonizou — é a primeira retrospetiva destinada ao brasileiro fora do país natal — foram os escolhidos, porque assim exige a altura. “O festival não existe separado do tempo em que acontece. As questões do mundo interessam-nos”, afirma Miguel Ribeiro. “Tínhamos muito claro que era importante falar do Brasil e de uma ideia de Brasil que fosse suficientemente livre e combativa para fazer sentido nos tempos que vivemos. O pós-eleições será um momento de novas etapas. As imagens de Reichenbach, nas quais o lado lúdico da vida está muito associado a uma existência profundamente política e engajada nas questões socioeconómicas, é um grande mote para repensar caminhos futuros”, sublinha.
O cineasta viveu num tempo em que era proibido ousar, experimentar e criar em liberdade. Pagou com a censura da ditadura militar [1964 e 1985], recuperada com a liderança de Bolsonaro. “Quem Tem Medo?”, de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr., faz um registo dos tempos através de trabalho, material de arquivo e entrevistas a artistas censurados durante a era bolsonarista; “Amigo Secreto”, uma das estreias internacionais que Miguel Ribeiro releva, também retrata os efeitos dos últimos anos. Posterior ao filme sobre o caso Vaza Jato, que levou à prisão de Lula da Silva, haverá debate com a realizadora Maria Augusta Ramos e Leandro Demori, ex-editor executivo de “The Intercept Brasil” e que protagoniza o documentário.
Na competição internacional — só com estreias mundiais e internacionais —, Ribeiro sublinha a pluralidade de temas e formatos. Põe a tónica nos cineastas que usam outros mundos artísticos para chegar ao que querem retratar. “Pierre Guyotat, le don de soi”, de Jacques Kébadian, “Elfriede Jelinek — Language Unleashed”, de Claudia Müller, e “In Fields of Words: Conversations with Samar Yazbek”, de Rania Stephan, fazem-no. As exibições contam com a presença dos realizadores assim como acontece com “Se’-back”, do japonês Shichiri Kei, e “Date in Minsk”, de Nikita Lavretski, incontornável no novo cinema bielorrusso. Camille Degeye também estará em Lisboa para apresentar “Almost a Kiss”, curta-metragem rodada em 16 mm e que conclui o díptico iniciado com “Journey Through the Body”. “Pensa o luto, mas vai além da perda. A ideia do cinema documental que regista o íntimo e o torna público, e como tal discutível e logo político, interessa-nos muito”, afirma Miguel Ribeiro.
Há tensão no DocLisboa
As fronteiras também são questionadas na competição portuguesa, que inclui 12 filmes com todas as nuances que o made in pode abarcar. “É cada vez mais interessante pensar nesta competição como uma redefinição ou uma indefinição do que pode ser o cinema português. Se há uns tempos se limitava muito aos cineastas portugueses que estão a fazer cinema em Portugal, neste momento é uma competição com tão poucas fronteiras como as da internacional”, salienta Miguel Ribeiro.
A par dos que realizam cá e são de fora e dos que são de cá e realizam fora há outros trabalhos que merecem atenção, não competem e são de portugueses. Miguel Ribeiro sugere o novo filme de Catarina Alves Costa, que visita a cultura makonde em Moçambique através do trabalho da antropóloga Margot Dias. A Margot acrescenta a nova produção de João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata. Ainda no rescaldo de “Fogo-Fátuo”, a dupla estreia “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes nem Depois”, que revisita o cenário de “Os Verdes Anos”, de Paulo Rocha. “Apesar de serem exatamente os mesmos lugares e filmados da mesma perspetiva, revela-se uma outra Lisboa, e daí surgem novas questões. É aí que estamos.”
Numa altura em que os cinemas escasseiam na capital e mais ainda noutras partes do país, lamenta Ribeiro, os festivais são entre outras coisas oportunidades — “muitas vezes únicas” — de ver determinados filmes e propostas, vinca. “O que o público do DocLisboa sempre pôde contar e assim continuará é com uma contínua investigação sobre o inesperado. O que nos interessa é criar diálogos, de forma a proporcionar um processo de acumulação e de tensão. Não procuramos filmes que respondam, expliquem ou solucionem o mundo mas antes que continuem a alimentar inquietação e acesso à sua complexidade. É essa defesa que fazemos do documental”, afirma. “Não sei se é o que nos diferencia, mas é o que se encontra garantidamente aqui e não se encontra em muitos lugares.”
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