Estamos instalados num lugar quimérico, uma espécie de cápsula do tempo de um certo ideal de vida americano, instituído como modelo nos anos 50. Casas espaçosas, com um jardim à frente e lugar avantajado para o inevitável automóvel, de consideráveis dimensões. Uma comunidade suburbana, segura e confortável, de casas similares e vidas tiradas (quase) a papel químico. Todos os dias de manhã, os homens saem de casa, a horas regulares, deixando as mulheres a tratar do lar, eventualmente das crianças. Depois das tarefas domésticas, empreendidas com alegria e nenhuma sensação de enfado ou rotina, as esposas juntam-se nas aulas de ballet, na piscina comunitária ou indo às compras na cidade para onde se dirigem em confortáveis transportes coletivos.
Ao fim da tarde, os maridos regressam a casa, recebem o beijo da praxe, as mulheres impecavelmente arranjadas e maquilhadas, o jantar no forno, praticamente pronto Até pode ser oportuno algum envolvimento íntimo, havendo amor a sério — e, pelos vistos, há, pelo menos no casal protagonista, Jack (Harry Stiles) e Alice Chambers (Florence Pugh), atendendo ao que um belo dia fazem, mesmo ali em cima da mesa posta que Alice desfaz em orgástico esbracejamento. Tudo está bem em Victory, a comunidade onde os homens trabalham nos escritórios da empresa Victory, as mulheres vão às compras em lojas Victory levadas por transportes Victory e os víveres e demais bens necessários ao quotidiano são assegurados por fornecimentos Victory. O médico pronto a acorrer ao mínimo problema de saúde é, evidentemente, da Victory, também. Victory fica no meio de um deserto e as pessoas não têm vontade alguma de sair do espaço onde estão abrigadas.
Em momento nenhum sabemos que empresa é essa, a fazer uma espécie de grande experiência social, apenas que pertence a Frank (Chris Pine), empresário muito rico, visionário, com aura de boneco da Mattel e um sorriso onde só falta que cintile. Também não sabemos exatamente o que fazem os homens durante a jornada de trabalho; o mais estranho é que as mulheres também não sabem. Naquele mundo de celofane e perfeição, há uma regra que todos assinaram respeitar: os maridos não falam de trabalho em casa, as mulheres não fazem perguntas a esse respeito. E, afinal de contas, o que é que isso interessa se a vida flui numa agradabilidade que a maioria dos americanos gostava de ter e não tem? O que a Victory dá é tanto — uma existência “safe and secure”, não se cansam de apregoar — e tão pouco é o que pede!
Mas, um dia, Alice principia a estranhar. Uma amiga, Margaret (KiKi Layne), começou a agir de modo errático, Alice acha que ela descobriu qualquer coisa e a Victory está a tratar… de a ‘tratar’. Para mais, um dia, passa a fronteira dos limites do território a que a população está circunscrita e vê algo que aviva as suspeitas: aquele mundo não é o que parece, conjetura um fundo sinistro, manipulador, totalitário.
“Não Te Preocupes Querida” é um filme-mistério em banho de ficção científica, terrivelmente bem aparelhado do ponto de vista dos cenários, do guarda-roupa, da criação física e mental do espaço-Victory. Até os enigmas, as assombrações que ficam sem uma ‘explicação’, um lugar arrumado na lógica da ação-consequência (como as imagens ‘busbyberkeleyanas’ dos bailados filmados em plano vertical com as dançarinas a fazer caleidoscópio a preto e branco) são estimulantes na sua opacidade imediata. A realização de Olivia Wilde é lesta, sem demasiados floreados, embora a volúpia dos planos com drone pudesse ser mais contida. Os atores cumprem (da britânica Florence Pugh a mostrar a maturidade interpretativa que lhe conhecemos desde “Lady Macbeth”, em 2016, a Chris Pine, sinistro sob a capa do mago que descobriu a poção da felicidade, do sistema que evita o caos; elo mais fraco é Harry Styles, pouco convincente quando arreda a postura do marido perfeito). Onde as coisas parecem não ter estado inteiramente oleadas é no argumento, a deixar pontas soltas um pouco por todo o filme. Sejamos benevolentes: talvez seja para terem por onde pegar, numa sequela, numa série, num qualquer seguimento a haver.
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