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Albano Jerónimo é um outsider em “Restos do Vento”. Tiago Guedes revela tudo sobre o novo filme

Albano Jerónimo é um outsider em “Restos do Vento”. Tiago Guedes revela tudo sobre o novo filme

É de Cannes que chega o novo filme de Tiago Guedes, passado numa aldeia portuguesa do interior. O realizador fala ao Expresso sobre a longa-metragem “Restos do Vento”

O novo filme de Tiago Guedes ainda mal começou e já Laureano está a levar pancada que nem saco de batatas. Ele defrauda os seus pares, atraiçoa uma tradição pagã na aldeia de um interior português em que os rapazes, para mostrarem que são homens, são forçados pelos adultos a emborcar bagaço e a “mostrar os tarolos” antes de darem caça, mascarados, às raparigas que encontram na rua. De violência e misoginia fala-nos “Restos do Vento” sem dó nem piedade. Os 12 minutos do prólogo em que conhecemos Laureano começam e terminam com dois planos dele fora de foco, um passado de pesadelo: ele é o outsider, o patinho feio daquela aldeia igual a tantas em que os filhos carregam a boa ou a má reputação dos seus progenitores, ‘és o filho deste, tu daquele, olha que o teu pai deixou dívidas por pagar aqui na taberna’...

Daquela tarde sangrenta, daquela festa popular só ambiguamente situada no espaço e no tempo (se os mascarados se assemelham aos caretos de Trás-os-Montes, o filme, esse, foi rodado no distrito de Castelo Branco, Beira Baixa), levará Laureano, ele que defende uma moça ao invés de a humilhar, traumas para a vida. Nisto, passam 25 anos sobre o genérico inicial e Laureano, já com Albano Jerónimo no papel, é o louco da aldeia, o vagabundo errante que os cães sem dono acompanham. Dorme num pardieiro. Se não ensandeceu já, ficou perto disso. 25 anos passaram e as tradições são o que sempre foram.

Samuel (Nuno Lopes) gere agora o matadouro local, Paulo (João Pedro Vaz) seguiu caminho na GNR e vive com Judite (Isabel Abreu), que nunca esqueceu o dia em que Laureano a defendeu. E ainda guarda por ele um afeto especial. Já Vítor (Gonçalo Waddington) foi para fora, para a cidade, ganhar a vida, mas não singrou e meteu-se em encrencas. Anda agora a ver se arranja álibi credível para que a aldeia não se dê conta disso. Todos bem entrados nos quarentas, eles descobrem-se presos à vida de adultos, aos filhos, às vidas familiares, ou às dívidas contraídas que não conseguem pagar, resignados e tristes. Vítor preocupa-se particularmente com Salomé (Leonor Vasconcelos), a filha que tem de Judite e que vive com a mãe e o padrasto. É uma personagem que se revelará decisiva nesta história.

“Quis falar da violência exercida por um grupo de amigos sobre um indivíduo que não conseguiu tornar-se amigo de ninguém. O que me importa é a falta de consciência dessa violência”

Tiago Guedes, realizador

Só que Laureano é o contraponto a tudo isto. Outsider nasceu e assim ficou — como se tivesse parado na adolescência que não o deixaram ter. Toda esta definição de personagens que aqui se deixa em esboço é um dos pontos mais fortes de “Restos do Vento”, de tal modo ela é consistente e vai ganhando em eficácia à medida que o filme se desenrola a partir daquele prólogo, ponto de partida em que “eu quis falar da violência exercida por um grupo de amigos sobre um indivíduo que não conseguiu tornar-se amigo de ninguém”, assim nos contou há dias Tiago Guedes. “Laureano entra naquele mundo e depois é abandonado por ele. Já em relação à violência, o que me importa como proposta de trabalho é a falta de consciência dela, permitindo que o Mal se perpetue. Laureano é a personagem trágica do filme. Vai pôr em casa o erro de acreditarmos que, se formos bons, se praticarmos o bem na sociedade, seremos recompensados. Mas não é assim. Só raramente é assim.”

QUATRO MÃOS, DOIS TIAGOS

“Restos do Vento” é a primeira de três longas-metragens estreadas na última edição de Cannes (foram aliás cinco, se contarmos com as coproduções) a chegar às salas. Passou nas “Sessões Especiais” do festival (seguir-se-ão “Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues, a terminar este setembro, e “Alma Viva”, de Cristèle Alves Meira, lá mais para a frente, no arranque de novembro). E é um filme que Tiago Guedes tem há muito na cabeça, tudo por causa de uma pessoa que ele em tempos conheceu, uma “espécie de Laureano” de outro tempo e de outro contexto. Em 2010, Tiago Guedes cruzou-se profissionalmente com o hoje diretor do Festival de Avignon, o encenador e dramaturgo Tiago Rodrigues, a propósito de uma minissérie para a TV, “Noite Sangrenta”, coescrita pelo último.

Cresceu a amizade e foi a quatro mãos que “Restos do Vento” cresceu também. Aliás, vários atores daquele trabalho televisivo fazem agora parte do elenco da longa-metragem e isto vale muito mais do que a mera curiosidade: é prova de que há aqui um processo evolutivo entre artistas que gostam de estar juntos e se têm apoiado uns nos outros. “O Tiago [Rodrigues] desenvolveu muito os diálogos numa primeira fase a partir de uma história verídica, alguém que também ficou à toa, para sempre alheado do mundo. Em seguida reescrevemos a história que eu concluí numa última fase, quando voltámos a questionar tudo com os atores”, contou o cineasta. “No processo de escrita começámos às tantas a imaginar que ator poderia fazer cada personagem e o texto acabou por ir-se adaptando aos rostos que já tínhamos na cabeça. É que há aqui uma afinidade mútua que já vem de longe, entre o Tiago e eu, entre nós e os atores...”

Filme geracional, “Restos do Vento”, dentro e fora do ecrã? “Se calhar ajuda sublinhar que o Tiago e eu já tínhamos trabalhado, de facto, com a maior parte destes atores. Todos eles com idades aproximadas e todos eles belíssimos atores portugueses. Tanto que quase nem ensaiámos: optámos antes por fazer uma ‘residência’ 15 dias antes da rodagem, na zona em que filmámos. Visitámos os locais, falámos muito do argumento. Um bocadinho como se faz nos ensaios de teatro. Com muita conversa sobre o assunto, deixando o mais importante para quando chegasse o momento.”

Judite (Isabel Abreu) nunca esqueceu o dia em que Laureano (Albano Jerónimo) a defendeu

OS CÃES SÃO MELHORES DO QUE OS HOMENS

Sem pouco adiantar do que acontece em “Restos do Vento”, diga-se que às tantas aparece um cadáver a quebrar com força aquela cadeia natural de transmissão entre pais e filhos e que esse acidente, afinal, é outra coisa. “Reconheço que há no filme um who dunnit?, ele existe, não há como o esconder, ainda que a intriga policial nunca tenha sido o mais importante para nós. Mas é evidente que os espectadores vão desconfiar deste ou daquele. Um crime fica por resolver.” Tiago Guedes ressalva contudo que lhe interessa mais o aspeto coral do filme, aquele espírito de matilha, porque “estou a trabalhar sobre a dinâmica de um grupo em que todas as personagens acabam por ser vítimas de uma circunstância social contra a qual não sabem defender-se. A violência passou de uma geração a outra. Foi ensinada. É uma coisa entranhada que vem de sempre, como o hábito que os adultos têm de dar estalos aos rapazes na cena do prólogo que se passa na tasca”.

Os cães são de tudo isto silenciosas testemunhas. Há muitos em “Restos do Vento”, pelo menos nove estão generosamente creditados, assim como o treinador que deles se ocupou. E os latidos acompanham o filme até ao termo do genérico final, não foram esquecidos na mistura de som. “Sabe que ainda ninguém me falou disso?”, confessa Tiago Guedes. “E eu tenho pena. A presença dos cães no filme é absolutamente intencional e contámos com a ajuda preciosa do Ezequiel [Sousa, o treinador] ao longo de toda a rodagem. Eu queria cães sem raças típicas específicas, sem pedigree, sem treino. Queria cães vadios. O Ezequiel encontrou um grupo que se dava bem. Os cães são muito importantes para a personagem do Laureano [‘somos amigos’, como ele diz logo no início]. Representam o abandono dele. E fizeram bem à equipa, toda a gente se animava sempre que havia dias de rodagem com cães.

Aquela cadela que está sempre com o Albano, a Molly, passou literalmente o filme todo ao pé dele. O Albano ia passeá-la todas as noites. Criou-se uma afinidade muito real entre eles que passou para os planos. Estivemos atentos e sempre que pudemos aproveitámos para o filme os momentos que os animais nos deram.” Além disso, passa pelos cães a ideia de que eles são melhores do que os homens ou que, pelo menos, não fazem aquilo que os homens fazem uns aos outros. Já o título, “foi sofrendo nuances”, contou Tiago Guedes. O filme chamava-se apenas “Restos” numa etapa inicial, “restos de tudo, de pessoas, de coisas, das sobras de comida. Restos do passado. Mas a palavra não tem em português o alcance, por exemplo, que remains tem em inglês. E então surgiu o vento. Que vem da ladainha contada no início do filme”.

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