
“Daniel e Daniela” fala do colonialismo, da mestiçagem cultural - e põe-nos a pensar. O documentário de Sofia Pinto Coelho estreia-se esta quinta-feira
“Daniel e Daniela” fala do colonialismo, da mestiçagem cultural - e põe-nos a pensar. O documentário de Sofia Pinto Coelho estreia-se esta quinta-feira
texto
Daniel Nunes é, pelo menos, uma pessoa singular. Mestiço, cabo-verdiano cruzando um pai branco e uma mãe negra, homem de mais de 80 anos (nasceu em 1935) e com muita África na vida — Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau — agora com Portugal como lugar de morada, estranhou que a filha, adolescente, chegasse da escola e anunciasse que tinha uma nova colega, escurinha. Foi interrogar a professora, perguntando-lhe de que cor era a filha. “A sua filha é escurinha”, teve como resposta. Mas Daniel Nunes sabe que ‘escurinha’ não é designação de etnia, de cor de pele ou de coisa alguma com ela relacionada. E terá dito à professora: “A minha filha é preta.”
É assim que começa “Daniel e Daniela”, o documentário de Sofia Pinto Coelho que agora se estreia em sala, coproduzido pela Ukbar Filmes e pela SIC, o que indicia divulgação televisiva, a cumprir daqui a algum tempo. À ambiguidade da questão no âmbito escolar reagiu Daniel com a decisão de falar com a filha, Daniela, sobre a sua identidade, a história paterna, a negritude, levando-a aos lugares onde essa história aconteceu: Cabo Verde, terra-mãe, São Tomé, onde viveu o período mais feliz da sua vida e de onde foi constrangido a sair após a independência, em 1976, Guiné-Bissau onde Daniela nasceu e viveu até completar a instrução primária.
O filme testemunha esse périplo, uma viagem, o reencontro com amigos e familiares, memórias, considerações sobre a complexa e secular relação portuguesa com os povos africanos. A escravatura, o racismo, o colonialismo, os entraves ao desenvolvimento económico da África subsariana, as grandes questões gerais, digamos assim, cruzam-se, depois, com detalhes do dia a dia e que tanto podem dizer respeito às tradições guineenses do fanado como à memória traumática das grandes fomes que assolaram Cabo Verde durante a II Guerra Mundial. Tudo em tom brando, dando tempo ao tempo, e sem a preocupação estrita de engrenar uma narrativa que seja cronológica e explicativa.
Talvez seja ousado dizer, mas eu avento, que Sofia Pinto Coelho pôs entre parênteses a sua condição de jornalista e preferiu ir dando respiração ao fluir das imagens e dos sons. Em vez de contar uma história, em vez de fazer reportagem, acompanhar duas pessoas muito diversas, deixar ver algo sobre elas e o mais que elas destilassem. A ternura de um pai com idade para ser avô da jovem filha, as vontades dela (ser médica) e as recusas (jamais Presidente da República de Cabo Verde, da Guiné-Bissau ou de Portugal), as controversas opiniões dele, muito ao arrepio do que hoje está em voga.
Assim, se o colonialismo é sempre mau, o nosso foi o mais brando de todos, porque o povo português é, por natureza, brando, diz Daniel. Sobre a escravatura, chama a História em auxílio, a prática de tomar cativos em outros povos, inscrita em matrizes milenares, lembra, de passagem, os ancestrais da família da mulher (negros riquíssimos, donos de roças e escravocratas) e opina que não devemos envergonhar-nos porque não há povo na Terra com as mãos limpas sobre o assunto.
E nunca a câmara de Sofia Pinto Coelho se imiscui, parece anónima, invisível, não perscrutada (só há uma cena em que alguém refere haver filmagens, quando o automóvel é parado na rua por militares na Guiné-Bissau e o soldado dá conta). Esse apagamento no ato de filmar corresponde, na prática, à escusa de conduzir a diegese, de marcar um ponto de vista. Direi, por isso, que “Daniel e Daniela” é um documentário que flutua, até na forma quase ‘natural’ como introduz documentos (sobretudo fotográficos, alguns fílmicos) por baixo da voz do protagonista que faz afirmações extraordinárias na imperiosidade axiomática com que se apresentam (“Quem construiu a linha férrea da Beira, não foi para servir nem a pretos nem a brancos, foi para drenar um produto”) — e com elas ir explicando o derradeiro século do colonialismo português.
Essa flutuação retira assertividade à narrativa que, deveras, não é sobre Daniel Nunes (para o ser precisaria de mais elos biográficos), nem sobre a relação entre aquele pai e aquela filha (com muitas pontas soltas), nem sobre a viagem concreta que empreendem. O que sobressai deste filme que se vê como quem procura, é algo de mais abstrato e simbólico, como se aquele homem e a sua vida, amigos, comunidade, experiências, expressassem a nossa face de mestiçagem cultural, a mansuetude de uma filosofia de existência com lições de vida. E põe-nos a pensar.
Quando Daniel repreende a filha por gastar num mês €140 de conta telefónica para falar com a mãe na Guiné-Bissau, instando-a a usar o WhatsApp, explica o que a maioria de nós diria (“o pai não é rico!”), mas acrescenta, logo de seguida, “o preto é pobre, o preto não guarda dinheiro, guarda só trabalho; o branco, não, o branco trabalha e guarda dinheiro”. E com essa afirmação, meio aventureira, meio irónica, canaliza conceitos bem mais fundos que não conseguimos dizer, de pronto, se certos, se errados, se sapientes, se enganosos.
Quando se dirige a um sobrinho guineense, licenciado e a caminho de doutoramento em Portugal, e lhe atira “tu, quando voltares para a tua terra, já não és preto, és o senhor doutor”, troca-nos as voltas porque ‘preto’, durante quase todo o filme uma designação de cor da pele, passa a ter um outro atributo, de classe.
Quando dá à filha um preceito de bom senso, ao dizer-lhe (após terem sido parados num posto de controlo militar) “nunca se discute com quem tem uma arma na mão”, Daniel faz estremecer os conceitos de ‘razão’ e de ‘direito’ — porque deixa inferir que quem tem uma arma tem razão e tem o direito da força.
Por outro lado, “Daniel e Daniela” tem o ângulo doce de um homem que gosta de África e das concretizações como técnico agrícola que por lá praticou ao longo de uma vida —homem, apesar das desilusões, com firme crença no futuro do continente negro — em contraste com a face amarga deixada por uma geração escolarizada de africanos sem vontade alguma de tornar. Daniela, futura médica, olha para o mundo, não pensa em volver; o sobrinho, adulto, tem mesmo uma rejeição articulada à sua Guiné-Bissau natal: “Para que é que eu quero voltar para um país onde as pessoas não têm vontade de se desenvolver, de evoluir?”
O que eu gostava de ter visto mais em “Daniel e Daniela” era a biblioteca. A legenda final diz-nos que as dezenas de milhares de livros e documentos, sobre África e a sua História, que Daniel Nunes coletou ao longo de sete décadas (comprou o seu primeiro livro raro em 1953, custou-lhe dez tostões e pagou em duas vezes) fazem dela uma das maiores do mundo sobre aquela temática. E eu tinha vontade que o filme penetrasse na biblioteca como se fosse o santo dos santos, com demora, profundeza e acuidade e pusesse o seu mentor a contar-nos histórias sobre livros. Havíamos de ficar ali, uma boa hora, à conversa. Passaria num fósforo. Mas isso é vício privado deste escriba, de quem se sente bem entre papéis. Outro filme seria — e por que não fazê-lo? Deste, sobra dizer que, mesmo em regime flutuante, gostámos de conhecer Daniel Nunes, homem de muitos saberes e dizeres, de quem vamos guardar um punhado de opiniões e algumas piadas inteligentes, provocatórias. Vejam lá esta, a contrastar a franqueza convivial do preto e a dissimulada reserva do branco: “Os brancos é que dizem ‘aparece’, mas não dão o endereço, ‘telefona’, mas não dão o número de telefone”…
Claro: quando se diz os brancos isto e os pretos aquilo estão-se a fazer generalizações que se podem tornar abusivas. Claro: Daniel sabe.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes