Cinema

A um passo de se tornar mendigo, “Tralala” recebeu um conselho: “Não seja você mesmo”

26 agosto 2022 21:54

Francisco Ferreira

Arnaud e Jean-Marie Larrieu realizam a comédia dramática musical, com Mathieu Amalric, Josiane Balasko, Mélanie Thierry e Denis Lavant nos principais papéis

26 agosto 2022 21:54

Francisco Ferreira

Tralala, a personagem de Mathieu Amalric, não demora nada a conquistar a audiência. É músico sem plateia, vive de esmolas em Paris num pardieiro de Montparnasse que está prestes a ser demolido. Com guitarra elétrica e amplificador rasca a tiracolo, canta e toca em ruas e bocas de Metro esperando que os transeuntes lhe deixem algo no chapéu. A vida não está fácil e menos fácil ficou com a multidão de mascarados que apareceu com a pandemia. Mas Tralala, a um passo de se tornar clochard (mendigo), vê-se antes como um électron libre, isto para citar a primeira canção que dele ouvimos, recordando logo, ainda que com a devida distância, o Boudu de Michel Simon no filme de Jean Renoir.

E se os anjos o protegem, há mesmo um que bate à porta deste filme dos irmãos Larrieu, um anjo todo de azul com aura de Nossa Senhora e que a Tralala dá a mão. Enche-lhe de luz mais um dia resignado e triste e desaparece tal como surgiu, deixando ao nosso herói uma misteriosa mensagem: “Acima de tudo, não seja você mesmo.” Assombrados pelo lirismo magoado dos musicais de Jacques Demy, os Larrieus transportam depois a personagem de Paris para a sua cidade natal em plena crise sanitária. E eis que chegamos ao pitoresco turístico-religioso de Lourdes onde Tralala, abençoado pelos santinhos que os rodeiam e pelo talento dos intérpretes que dão à costa (Josiane Balasko, Denis Lavant, ...), começa a dar corpo a uma impostura, fazendo passar-se por quem não é. O filme jamais escolhe o caminho da sátira (a que os tempos pandémicos também convidaram). Não, prefere sempre a fantasia, um fio romanesco naquela ‘terra de milagres’ em que há mentiras que salvam e famílias que se reinventam. E prefere as canções, todas originais, de Philippe Katerine, Bertrand Belin, Dominique A, Étienne Daho... “Tralala” tem uma alma musical que não só faz avançar a narrativa como nos tira mais do que uma vez o tapete dos pés. Não é o mais sólido filme dos Larrieus mas há aqui uma felicidade vibrante, que contagia. Há quem precise dela. / Francisco Ferreira