10 dezembro 2022 22:44

“Dois Homens” (1987-88) Óleo sobre tela, 106,7 x 75 cm, National Galleries of Scotland (adquirido em 1988)
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No centenário do pintor, está patente uma poderosa retrospetiva na National Gallery de Londres. Na casa-museu Freud, outra exposição analisa a família
10 dezembro 2022 22:44
Ao chegar à receção da National Gallery de Londres para levantar o meu bilhete como crítico do Expresso, fui surpreendido por uma atendente portuguesa, imigrante há oito anos no Reino Unido por não ter conseguido arranjar trabalho em Portugal. As ambições são agora outras — está a tirar um mestrado em História da Arte — e a conversa derivou logo para Lucian Freud, o sujeito da minha visita: inspiração nos clássicos da Renascença, regresso à figuração animal, comparações com Paula Rego, conjugação da popularidade com a controvérsia, etc. Muita da melhor arte inglesa no século XX foi criada por imigrantes: o mais inglês dos fotógrafos ingleses, Bill Brandt, nasceu em Berlim, tal como Lucian Freud (1922-2011), neto favorito do fundador da psicanálise, Sigmund. Ernst (arquiteto), pai de Lucian e filho mais novo de Sigmund, foi dos primeiros a escapar com a família ao nazismo, fugindo para Londres em 1933; Sigmund Freud faria o mesmo em 1938, no seguimento da anexação da Áustria por Hitler (Anschluss).
O percurso até à exposição faz-nos atravessar as salas da National Gallery de pintura renascentista. E é impossível não parar, com obra-prima à frente de obra-prima. Sem saber, preparamo-nos para “Lucian Freud: Novas Perspetivas”, tanto mais que o pintor afirmava que “ir à National Gallery é como pedir ajuda ao médico”. O velho Ticiano terá sido um dos seus conselheiros... Sabe-se que Freud tinha um passe especial que lhe permitia visitar a National Gallery de dia ou de noite (sem público), e que o usava várias vezes por semana para estudar ao vivo as obras dos grandes mestres. A National Galllery foi a sua universidade. Também eu, jovem estudante em Oxford nos anos 60, sempre que passava pela Trafalgar Square nunca deixava de entrar, nem que fosse para ver apenas uma pintura e ficar extasiado. (Ajudava o facto de a entrada nos museus britânicos ser gratuita.) O outro amor era Shakespeare, mas percebo agora que foi assim que comecei a entender a natureza humana. É conhecido que ao longo da vida Sigmund Freud leu e releu em inglês as obras de Shakespeare, o que terá contribuído para a sua decifração da psique humana. Agora, com a pintura de Freud, aprendi a valorizar a pele e a carne humanas como belas paisagens, com os seus vales e elevações ou o mato da pelugem. Concreto e abstrato fundem-se no milagre evolucionista dos nossos corpos. Magra ou obeso, velha ou novo, pouco importa. Ainda bem que o inglês tem duas palavras para ‘carne’: meat (que implica morte, como em ‘carne de vaca’) e flesh (que celebra a vida). A pintura de Freud deleita-se na ternura flácida da carne humana, ao vivo e em pessoa.