31 outubro 2010 5:43
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Filósofo, Fernando Gil nasceu em Muecate (Moçambique), a 3 de Fevereiro de 1937. Fez o liceu em Lourenço Marques, estudou sociologia em Joanesburgo e tirou o curso de Direito em Lisboa. Fixou-se em Paris em 1961, tendo-se licenciado em Filosofia, na Sorbonne. O doutoramento foi em 1971, com um trabalho initulado La Logique du Nom.
Trabalhou na OCDE e leccionou de 1972 a 1974 na Universidade de Vincennes. O regresso a Portugal foi só em 1976, ano em que passou a ensinar na Faculdade de Letras de Lisboa. Desde 1979 que é professor catedrático no Departamento de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, actividade que acumula com a de Director de Estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris.
Organizador das conferências O Balanço do Século e A Experiência do Mundo, realizadas respectivamente em Lisboa e no Porto, com o patrocínio do então Presidente da República, Mário Soares. Autor de vários livros, entre os quais Aproximação Antropológica (com que se estreou), Mimésis e Negação (prémio do PEN Club de 1984), Provas (1986) e Traité de l'Evidence (1993).
Coordenou a edição portuguesa da enciclopédia Einaudi.

Entrevista ao Expresso
"A Filosofia tem a ver com aquilo que os antigos chamavam uma arte de morrer, ou algo que tem
a ver com a libertação"
Fora dos círculos especializados da Filosofa, a presença de Fernando Gil não é muito notada em Portugal. São raros os artigos que escreveu para jornais, e mesmo o seu trabalho de carácter mais "cultural" (colóquios, conferências, ciclos de debates) foi sempre, de algum modo, um prolongamento do trabalho que tem desenvolvido na universidade (em Lisboa e em Paris). Algo avesso a entrevistas para o grande público, o Prémio Pessoa criou uma nova circunstância, uma espécie de intervalo para rituais de excepção.
Nasceu em Moçambique e foi para Lisboa aos 17 anos estudar Direito. Só depois é que lhe surge o interesse pela Filosofia?
O meu interesse vinha de antes. Foram contingências várias que me levaram a estudar Direito, mas fi-lo sem grande convicção. Devo dizer, no entanto, que sempre guardei uma grande "amizade" intelectual pelo Direito. Quando acabei o curso de Direito, publiquei um livrinho que se chamava Aproximação Antropológica. E percebi que tinha de estudar Filosofia se queria fazer Filosofa a sério. E então vim estudar Filosofa para Paris, onde comecei tudo de novo.
Nalguns dos seus livros, e estou a pensar neste último e noutro que se intitula Provas, há frequentes incursões no campo do Direito...
... E durante cinco anos, entre 1984 e 1989, ensinei Epistemologia numa Faculdade de Direito.
Acabou, assim, por mobilizar esse saber.
Com certeza. Serviu-me imenso. O Direito ensina-nos um rigor que só convém à Filosofa.
Em Paris, para onde vai em 1961 , encontra o ambiente favorável para estudar Filosofia?
Apanhei uma grande época do ensino da Filosofa, na Sorbonne. Vivia de traduções que fazia para Portugal, graças à amizade de directores de editoras, como o Pedro Tamen, que era director da Moraes, e que me pagava escandalosamente bem para eu poder viver.
E quando é que começa a ensinar?
Foi bastante mais tarde. Entretanto trabalhei na OCDE onde estive cinco anos a fazer um trabalho bastante interessante, em Ciências da Educação. A primeira vez que ensinei em Paris, a nível universitário, foi no Departamento de Psicanálise, na Universidade de Vincennes, de 1972 a 1974. Apanhei as grandes convulsões do Departamento de Psicanálise, quando Jacques Lacan quis controlar, se assim se pode dizer, o ensino da Psicanálise que lá se fazia.
O Direito, a Psicanálise, enfim, a incursão constante em muitos domínios do saber. Talvez se possa dizer que há um carácter enciclopedista na sua obra.
Há uma razão para isso, que espero que seja muito clara. Não tenho gosto nenhum por aquilo que se chama enciclopedismo. E, se tive muito a ver com enciclopédias foi em parte por contingências várias, porque calhou. Mas, por outro lado, há outras razões menos contingentes. Cada coisa, para ser o que é, tem de estar em ligação com todas as outras. A identidade ideal é uma rede de conexões infinitas. Para se perceber o mínimo sobre o mínimo seria preciso conhecer-se tudo.
O trabalho da Filosofia consiste precisamente em pôr em contacto universos de saber estranhos entre si...
Também é isso. Aquilo a que hoje se chama pluridisciplinaridade não é uma metodologia, é a única metodologia possível para se perceber seja o que for. E é essa a razão que faz com que seja inevitavelmente necessário estar-se aberto para fora de um certo limite.
É muito agradável ouvir o que me diz, mas não julgue que eu sei grande coisa de muita coisa. Só que tenho uma curiosidade considerável que faz parte da procura do conhecimento do singular. Conhecer o singular, deixe-me repetir, pressupõe o máximo de totalidade que se puder abarcar. Como é que alguém pode estudar, por exemplo, uma questão como a da identidade, se não se der conta de que ela tem aspectos lógicos e metafísicos que a Filosofa tradicionalmente tem estudado e também aspectos psicológicos, sociais, biológicos?
Como se pode então falar de identidade se não se pensar, para além da Lógica e da Metafísica, na Psicologia, na Biologia, na Sociologia e até na Política?
Em Portugal, para além do ensino, tem estado ligado a outro tipo de projectos e domínios. A um nível que devemos também considerar de empenhamento cívico, promoveu dois ciclos de conferências, "O Balanço do Século", em Lisboa, e "A Experiência do Mundo", no Porto, com o patrocínio do Presidente da República.
Houve, de facto, aí um empenhamento cultural. É útil que a Filosofia venha para a conversa pública e haja um diálogo com físicos, biólogos, sociólogos, etc. Mas há também uma relação com uma pessoa que é o Presidente Mário Soares, que me convidou para ser seu conselheiro.
Como é que conheceu Mário Soares?
Conheci-o em Portugal, não foi em França, nos anos de exílio. Com o meu amigo Manuel Villaverde Cabral, queria criar uma instituição, que veio a ser o Gabinete de Filosofa do Conhecimento, de que somos hoje os directores, e passámos uma tarde em casa do dr. Mário Soares, quando ele era primeiro-ministro.
Ouviu-nos durante uma tarde inteira, quase não falou, e veio a apoiar-nos na criação do Gabinete. É uma pessoa a quem eu agradeço o ter apostado em mim numa altura em que ainda não tinha muitos elementos para o fazer. Outra pessoa que também o fez foi Eduardo Prado Coelho, que teve um gesto do mesmo tipo quando publiquei Mimésis e Negação.
Mas não é meramente pessoal, essa sua aproximação de Mário Soares...
Há também uma aproximação política.
O seu empenhamento político tem sido, no entanto, muito discreto.
Não sou um militante político, mas as minhas ideias políticas sempre foram muito claras: sou um social democrata convicto há imensos anos. Não tendo sido, de início, um exilado político, estive 13 anos sem ir a Portugal, entre 1961 e 1974. Depois de 1974 reencontrei-me no tipo de linha política que era a do Dr. Mário Soares e do Partido Socialista, a que nunca pertenci.
Não sente como algo de estranho um filósofo ganhar este prémio? E pergunto isto por duas ordens de razões: primeiro, porque à Filosofia é mais difícil reconhecer uma dimensão cívica, de passagem ao mundo profano, que um prémio destes de algum modo pressupõe; em segundo lugar, porque em Portugal não há uma tradição filosófica muito rica.
O que é mais estranho para mim não é tanto a Filosofa ou eu próprio (já que entendo que ambos somos premiados simultaneamente) termos a ver com um prémio, mas é a minha relação com o prémio. Tenho de me beliscar um pouco para me aperceber do que um prémio pode ser. Nunca pensei a minha vida de modo a que houvesse nela lugar para prémios. Por outro lado, e respondendo directamente à sua pergunta, que faz referência à relação entre Filosofia e Cultura: tenho tentado conciliar esses dois registos, que são, em certa medida, contraditórios. Por um lado, luto muito pela especificidade da Filosofa, na sua diferença em relação à Cultura. Mas, por outro, entendo que a Filosofia faz parte do movimento das ideias e daquilo a que se chama também cultura. Por isso, gostaria que à Filosofia fosse reconhecido um papel na cultura, mas gostaria também que ela não se norteasse pelos padrões simplifcadores que fazem muitas vezes funcionar a cultura. Deste ponto de vista, o prémio calha muito bem à Filosofia, e eu não sinto estranheza nenhuma em ela ser contemplada por algo que é de natureza cultural.
Encontramo-nos aqui perante um tema que é o da responsabilidade da Filosofa. Mas que tipo de responsabilidade é o dela?
Esse é um assunto que requereria muito tempo, pelo que me vou limitar a levantar uma pontinha de um enorme véu. Decorreu há tempos a semana da ciência europeia e, em Paris, na "Cidade da Ciência", coube-me introduzir uma discussão sobre política, ciência e ética. O que eu aí disse tem a ver com a questão da responsabilidade. Quando discutimos as relações da investigação com a política científica e com a política damo-nos conta de que há problemas éticos, que implicam nomeadamente a responsabilidade. Uma responsabilidade, aliás, que não se joga apenas em relação ao presente mas em relação ao futuro, quer se trate da medicina predictiva, quer se trate do diagnóstico pré-natal, etc. Ora bem, uma ética da responsabilidade é algo que nunca foi desenvolvido. Max Weber opunha uma ética da responsabilidade a uma ética da convicção, mas nunca ninguém deu "carne", se assim se pode dizer, a uma ética da responsabilidade. Para ser mais claro: há uma ética do respeito, da lei e da liberdade, que é a ética kantiana em geral, que essa, sim, foi objecto de um trabalho enorme, depois e até antes de Kant. Aí, a Filosofa conseguiu preparar instrumentos capazes de enfrentar problemas que encontramos na nossa vida. A lei e a liberdade são problemas fundamentais da ética e da vida social. Mas o mesmo não aconteceu com a responsabilidade: não há conceitos capazes de articular a ideia de responsabilidade. Sabemos que temos de ser responsáveis, mas não sabemos de que maneira é que o podemos ser. A glaciação (é este o termo) do pensamento moral no século XX (e a razão por que isso aconteceu é outra grande história) fez com que nós hoje saibamos que os problemas do desenvolvimento da ciência e da relação da ciência com a sociedade são problemas da responsabilidade, mas não sabemos como tratá-los. À Filosofia cabe desenvolver conceitos que, tomados por outras pessoas (políticos, investigadores), se possam traduzir em saber como ser responsável. Toda a gente fala de responsabilidade, mas sempre que se trata de tomar decisões ninguém sabe ao certo o que fazer, porque nos faltam instrumentos, operações, conceitos. A relação da Filosofia com o mundo não é uma relação de espelhamento ou de influência imediata, implica uma rede imensa de mediações.
Aliás, neste século, sempre que se pensou que essa relação podia ser imediata, os resultados foram desastrosos.
Mas agora, que o Muro de Berlim caiu, podemos também reconhecer que, apesar do que acaba de dizer, havia algo de importante na ideia de que a Filosofia tinha também a sua palavra a dizer sobre o mundo.
Husserl falava do filósofo como "funcionário da humanidade"...
A palavra funcionário não é aquela de que mais gosto, mas sinto-me próximo dessa ideia.
O filósofo como "funcionário da humanidade" refere-se a uma ideia de universalidade, que deixou de ser uma pretensão do discurso filosófico.
E ainda bem que deixou. Eu acabo de escrever um livro em que mostro que há uma espécie de delírio extraordinário na filosofia de Husserl. E desse delírio faz também parte uma grande eloquência em que eu não me reconheço. Mas o mais importante é o sentido da responsabilização. Os conceitos não serão universais, não se trata da humanidade toda, e o funcionário estará sempre aquém daquilo que se pode fazer; mas o que é importante é que ele se sinta em consonância com problemas que não são só os dele, não são só os do puro pensamento, se tal coisa existisse. Tire-se a Husserl a eloquência, a ênfase, o universalismo exagerado, e a sua tese essencial é perfeitamente justificada.
Acha que podemos passar da ideia de responsabilidade à de efectualidade? E entendo aqui por efectualidade não apenas as implicações políticas da Filosofia mas, em geral, todos os contextos ou horizontes concretos com que o pensamento se mede e se confronta.
Eu diria que não podemos pedir à Filosofia outro tipo de efectualidade senão o de construir conceitos, em nome das próprias exigências da compreensão. O que a Filosofia tem a oferecer é isso. Não é intervir, porque isso cabe aos políticos fazer, cabe-nos a cada um de nós, filósofos ou não, como cidadãos.
A Filosofia é como a Física, como a pintura, como as artes: o que elas têm a fazer é tratar os seus próprios problemas, em que todos os outros se reconhecem também. Penso, por exemplo, que a Filosofia tem a ver com aquilo que os antigos chamavam uma arte de morrer, ou algo que tem a ver com a libertação. Se a Filosofia nos ajudar a sermos um pouco menos apertados pelos constrangimentos da nossa condição, o que é que se pode pedir mais?
Quando eu falava em efectualidade estava a pensar na relação da Filosofia com aquilo que a excede, a "realidade", o "mundo"...
Claro. A Filosofia vive fora da Filosofa. O grande desastre da Filosofa foi a criação das cátedras de História da Filosofa, no princípio do século XIX. Nunca tinham existido antes, mas no entanto sempre se fez História da Filosofa. A Filosofia sempre viveu de fora dela: dos problemas de moral, das problemas do conhecimento, da criação em geral, da compreensão. Todos esses problemas são colocados por outras disciplinas. A Filosofia não possui um modo de compreensão que lhe seja absolutamente exclusivo, mas pode elucidar o que é a compreensão, o que se passa na nossa mente quando julgamos compreender um teorema. Esses problemas, em princípio, não são filosóficos, são os problemas quotidianos, são os problemas do conhecimento científico, etc.
No entanto, a Filosofia legitima-se apenas no interior de si própria, isto é, o único discurso que legitima a Filosofia é o próprio discurso filosófico...
... Porque é um tratamento técnico. É um pouco como a Física, que tem uma relação com a natureza, mas possui um instrumentário e uma linguagem que lhe são inteiramente próprios. E a sua relação com a natureza passa a ser mediatizada. É toda a função da experimentação. A experimentação é uma relação com a natureza, mas é também uma barreira, um ecrã entre o pensamento da Física e a natureza.
Mas, no caso da ciência, a questão da legitimação obriga a pensar na relação do discurso com os objectos, com o estado de coisas exteriores que, digamos, aspira a ser uma relação de verdade, enquanto na Filosofia há um critério de validade que é interno ao próprio discurso.
Está a pôr o dedo numa ferida que é talvez a aporia constitutiva da Filosofia. A Filosofa representa uma reelaboração da experiência, de modos da experiência que são tematizados por outros discursos: técnicos, artísticos, jurídicos, morais, científicos, etc. Ora, como se faz essa reelaboração e que visa ela? Ela procura contribuir para uma elucidação dessas experiências, e o paradoxo está em que a elucidação se faz pela reelaboração, Mas uma reelaboração que se afasta consideravelmente dessa experiência, que pode mesmo ser entendida como uma derrapagem e um salto mortal: mas a "derrapagem" é condição absoluta da elucidação. Noções como "ser" ou "transcendental" estão fora da experiência, mas sem elas o filósofo é incapaz de pensar esta última. Aristóteles dá desta situação uma ilustração admirável na Metofisico. O tratamento do ser, objecto do tratado, é, Aristóteles reconhece-o, inconclusivo. Mas foi a sua pesquisa em torno do ser que permitiu elaborar noções preciosas para a elucidação da experiência: potência e acto, matéria, forma, as diferentes causas, e dezenas de outros conceitos. De maneira que há, talvez, a necessidade de uma passagem por aquilo a que Kant chamava o foco imaginário do pensamento - porventura "delirante" - e sem o qual não se pode tratar daquilo que para nós todos aparece como experiência da realidade.
Não acha que neste século a Ciência acabou por devorar a Filosofia?
Nunca foi completamente assim. O século XX está cheio de cientistas que foram filósofos, na sua própria actividade científica. Por outro lado, o que aconteceu nos últimos vinte anos é que as ciências descobriram elas próprias os problemas filosóficos fundamentais. Nunca me canso de o repetir.
Volta a Portugal em 1976, para ensinar primeiro na Faculdade de Letras de Lisboa e depois na Universidade Nova, onde, juntamente com outros professores, contribuiu para uma renovação do ensino da Filosofia e para o desenvolvimento da investigação nesse campo.
O que se passou foi o seguinte: em 1979/80 criou-se na Universidade Nova algo que nunca tinha havido, os mestrados, de que eu, com outros colegas, fui e sou professor. A inexistência de mestrados significava que não havia estudos de Filosofia para além da licenciatura. Não fui eu quem trouxe grande coisa, foi a criação da estrutura do mestrado que permitiu a muita gente que tinha acabado os estudos inscrever-se em estruturas de pós graduação, e permitiu também trazer a Portugal filósofos importantes. Foi por isso possível desenvolver na Universidade Nova um trabalho de investigação, criar revistas e lugares de discussão.
Acha que há hoje, em Portugal, uma actividade fecunda no ensino da Filosofia e na investigação?
Há com certeza. Muito embora haja enormes deficiências institucionais. Não há bibliotecas, não há, nos factos, uma carreira de investigador em Filosofa. As pessoas só podem ter a sorte de vir a ser assistentes, mas depois as carreiras fecham. Com 56 anos, sou o decano do Departamento de Filosofa da Universidade Nova. Vê o que isto significa? Significa que, se não me acontecer um azar, ainda tenho mais 13 anos para ensinar. Quando é que vai ser possível recrutar novas pessoas? Tem de haver carreiras paralelas às do ensino. Se a profissionalização da Filosofa só se pode fazer no quadro da universidade, o espaço de manobra é muito estrito.
Em França há um reconhecimento do seu trabalho?
Julgo que sim. E as funções que ocupo em França falam por si. Mas é preciso ter em conta que aqui, em termos de quantidade, a "oferta" é muito maior, enquanto, quase diria, a "procura" não a acompanha na mesma proporção... Mas considero-me uma pessoa bem tratada pelas instituições. Na École des Hautes Études foi-me proposto que me candidatasse, não fui eu que resolvi candidatar-me. E em Lisboa tenho tido um apoio extraordinário da Universidade Nova. Sem ele, não poderia desfrutar das excelentes condições de trabalho que são as minhas. O presidente da École des Hautes Etudes, o meu amigo Marc Augé, utiliza uma fórmula de que eu gosto, que é a do "patriotismo de instituição". É algo que sinto em relação à Ecole des Hautes Etudes, mas talvez mais ainda, se possível, em relação à Universidade Nova de Lisboa. Dá-me, por exemplo, muito gosto que José Mattoso, meu colega na UNL, seja outro contemplado pelo Prémio Pessoa.
Você vai dirigir em França, juntamente com Eduardo Prado Coelho, uma colecção que se intitula "Biblioteca do Pensamento Português", onde serão editados textos de pensadores clássicos portugueses. Não é um pouco estranho esse seu interesse, aparentemente tão distante do universo em que se move habitualmente?
Isso tem uma história, e é muito recente. Um dos meus mais antigos amigos é Hélder Macedo, que é um estudioso da literatura portuguesa. E as minhas ideias sobre a evidência, ainda antes de o meu livro ter saído, fizeram eco em preocupações dele. Pouco a pouco pensou-se na transposição de alguns dos meus problemas para certos temas da cultura portuguesa. E foi assim que, com o apoio da Comissão das Descobertas e do Instituto Camões, fizemos um projecto de publicação de textos do pensamento profético e retrospectivo, entre os séculos XVI e XVII, em dois volumes. A minha preocupação, hoje, é mostrar como aquilo que eu julgo ser a estrutura da evidência se encontra em domínios muito diferentes. Foi assim que fui parar a esses temas da literatura portuguesa. Por exemplo, fiz um estudo bastante desenvolvido sobre Bernardim Ribeiro, onde encontro muitos aspectos do que penso ser o discurso da evidência. Para lhe dizer tudo, sou um leitor da literatura portuguesa clássica desde sempre. Desde os meus 15 anos que leio regularmente Camões e Bernardim e todos os nossos clássicos...
... Que prefere aos contemporâneos?
É verdade. Sou daqueles que, admirando imenso Pessoa, tenho mais prazer em ler Camões. É uma questão de afinidade. Gosto de velharias.
A sombra que veio do mato
Giles Deleuze diz que "todo o criador é uma sombra". Como fazer então um perfil biográfico de uma sombra, de um escritor, de um artista, ou de um filósofo?
Fernando Gil respira, caminha e senta-se como toda a gente, explica, responde pacientemente e com algum esforço às perguntas, temendo aparentemente o aspecto redutor tradicionalmente ligado a uma conversa jornalística.
Qual é o trabalho de um filósofo? Cita Nietzsche e evoca a "ruminação" a par de frequentes referências, fundamentais no seu discurso, à história da filosofia, à criação de ideias originais e à circulação e confrontação entre filósofos.
Segundo alguns manuais, a filosofia consiste na invenção de conceitos e a história da filosofia deve dizer o que um filósofo não disse mas está subjacente ao que disse. "Há certamente uma invenção, mas há ao mesmo tempo que pôr à prova os conceitos que são inventados, e essa invenção obedece sempre a um propósito de clarificação da nossa experiência", comenta Fernando Gil.
Um filósofo é um trabalhador do pensamento, e este é, para alguns, um exercício particularmente perigoso. "Desde o início do mundo que os mergulhadores do pensamento regressaram à superfície com os olhos injectados de sangue", dizia Melville, que gostava sobretudo da profundidade dos mergulhos das baleias. "Quando se pensa, afronta-se necessariamente uma linha onde se jogam o vida e a morte, o razão e o loucura - e só se pode pensar quando se está nesta linha de bruxaria", acrescenta Deleuze.
O filósofo português considera que as duas afirmações anteriores são "coisas certas, mas ditas talvez com uma ênfase exagerada - o pensamento frisa um pouco o loucura? É isso e sair de lá... 0 que disse no último livro sobre a evidência - que ela é essencialmente alucinatória, uma alucinação mais ou menos dominada - aplica-se no fundo o toda a filosofia que é sempre um discurso excessivo. Mas não é louco nem maldito quem quer e nada há de mais insuportável que o glorificação de riscos que nunca se correram".
Um filósofo contribui decisivamente para aquilo que Michel Foucault e Nietzsche definiram no chamado pensamento como "processo de subjectivação" - a produção de modos de existência, a invenção de novas possibilidades, individuais, de vida. É o que Foucault, e outros criadores ainda mais violentos do que ele, como Jean Genet, explicam como uma relação de força da vida (ou da morte) contra o poder.
O português relativiza: "É necessário introduzir gradações em frases como essas, não se está sempre diante do morte e essa afirmação do vida é um sinal de toda o invenção em qualquer domínio - não só no filosofia. E também no mais elementar do nossa vida, antes de tudo no amor. A força do vida é em si mesma subversiva, uma gradação desse discurso, porque não inventa o sua vida quem quer, nem se afronta o morte porque se decide afrontá-lo - salvo com o suicídio."
Nas suas reflexões sobre a política, Pascal é radical e diz que quem exerce o poder, mesmo que seja um rei (ou um presidente) excelente, nunca é mais do que uma força ao serviço da concupiscência. "É impossível e eu não saberia com certeza tratá-lo convenientemente. Entre o "concupiscência" e a "lei" há um sistema infinito de mediações que seria necessário reconstruir. E a lei não tem a sua origem no desejo", considera Fernando Gil. Para Pascal, tudo são relações de força - e é a força que domina. "Há relações de força, mas também muito em sentido contrário. Quem estudou Direito conhece a extraordinária riqueza do Direito Processual, todo ele virado para salvaguardar o equilíbrio dos interesses e da justiça".
Fernando Gil nasceu no mato, em Muecate, Moçambique, a 3 de Fevereiro de 1937. "Só havia três casas na localidade e a parteira foi uma vizinha, porque o meu pai chegou atrasado com a enfermeira. Depois de uma "infância demasiado feliz", revolta-se ainda criança contra o poder. "Tinha 12 ou 13 anos e tinha um sentimento de revolta contra a injustiça do tratamento dado aos africanos". Filho de um alto funcionário colonial, integrou-se rapidamente numa activa geração de jovens anticolonialistas que, na época, marcava a vida intelectual em Lourenço Marques. Publica o seu primeiro texto aos 12 anos, num jornal cultural da oposição, Itinerário - "eram umas impressões poéticas inspiradas num brasileiro, Fronklin de Oliveira..." O seu percurso é conhecido - completa o curso do Liceu em Lourenço Marques, estuda sociologia numa curta passagem por Joanesburgo e forma-se em Direito em Lisboa. O manuseamento das leis não o atrai o suficiente e parte para Paris, em 196 I , onde se licencia em Filosofia, na Sorbonne.
Antes, tinha publicado Aproximação Antropológica, o seu primeiro livro.
Em 197I, faz o doutoramento com La Logique du Nom, sob a direcção de Suzanne Bachelard. Quando acontece Maio de 68, é professor de Teoria da Literatura e, a seguir, trabalha na OCDE na área das Ciências da Educação e dá aulas de Filosofa e Psicanálise na Faculdade de Paris VIII.
Para ele, Maio de 68 foi um "sentimento misto de uma esperança roída pelo cepticismo e isolamento pessoal, no meio do explosão do juventude parisiense", a que Gil sentia já não pertencer. Aliás, o primeiro efeito que o 25 de Abril lhe provocou não foi muito diferente: "Treze anos de ausência fizeram com que não sentisse a revolução como propriamente minha."
Hoje continua no ensino - é professor catedrático no Departamento de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa e director de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, uma instituição em que só se fazem mestrados e doutoramentos, para além de ter entretanto publicado diversas obras como o recente Tratado do Evidência, Provas e Mimésis e Negação, bem como ter coordenado a edição portuguesa da enciclopédia Einaudi. Revela algum pudor no contacto com os jornalistas. Teme sobretudo o discurso televisivo, que considera "destrutor de toda a complexidade. Porque tudo é muito complicado". Acha, porém, que há programas bons, ou relativamente bons, nomeadamente na televisão inglesa, alemã ou francesa. Posto perante o exemplo do antigo programa "Apostrophes", diz: "Para se participar num programa desse tipo é necessário ter jeito e o programa não é necessariamente adulterador, embora já tenha visto grandes escritores espalharem-se... Há outros programas muito bons, como no canal franco-alemão Arte".
A máquina televisiva "pode ser maravilhosa, mas a sua finalidade dominante é promover o espectáculo pelo espectáculo" e a produção de "best-sellers", o que raramente é sinónimo de criação.
Que o digam os chamados "novos filósofos" franceses que, com a sua ocupação permanente dos "media", foram apelidados por um crítico como os homens das "variedades filosóficas". Fernando Gil parece privilegiar as aulas universitárias, o estudo e o debate, em detrimento dos "media".
* Publicado na edição
do Expresso de 10/12/93