Política

Ouça a escuta a Portas: "Kiel" passou a "aquilo" e "canal" passou a "Canalis"

9 fevereiro 2015 13:18

Filipe Santos Costa

Março de 2005: Portas em Kiel (Alemanha), testemunhando o início do fabrico dos submarinos

fotos “revista da armada”

Erros na transcrição das escutas de Portas alimentam novas suspeitas de Ana Gomes. E há mais confusões.

9 fevereiro 2015 13:18

Filipe Santos Costa

A frase de Paulo Portas, conforme foi transcrita das escutas telefónicas para o processo dos submarinos, que foi arquivado em dezembro, é críptica: "Ainda fui, ainda fui, aquilo!" (com ponto de exclamação e tudo), diz o então ministro da Defesa. Nessa tarde de 7 de março de 2005, a cinco dias de o Governo PSD-CDS ser substituído pelo Governo Sócrates, Portas conversava com Abel Pinheiro, dirigente e seu homem de confiança no CDS, responsável pelas finanças do partido. Portas tinha acabado de aterrar em Lisboa, e a conversa começava por aí:

P.P. - Então? Já cheguei. Aterrei agora. A.P. - Aterraste onde? P.P. - Aterrei da Alemanha. A.P. - Ainda foste à Alemanha? P.P. - Ainda fui, ainda fui, aquilo! A.P. - Fizeste muito bem. Ao (impercetível). P.P. - Ao Canalis, exato. A.P. - O Monte Canal é a promessa do Bismark. P.P. - Exatamente, exatamente...

A conversa prosseguia sobre o congresso do CDS, que se aproximava, mas o que interessa para o caso é esta parte. Lida assim, a conversa é estranha, algumas frases não fazem sentido, e há associações bizarras: aquilo, Canalis, Monte Canal, Bismark. O "aquilo" podia ser cifrado, e ainda levantar mais suspeitas quando, no mesmo contexto, surge o nome (será um nome, pois surge transcrito com maiúscula) "Canalis" - parece Canals, o homem detrás da Akoya Asset Management, a empresa suíça que ajudava portugueses ricos (como Ricardo Salgado e outros) a fugir ao fisco. Este diálogo, conforme está no processo, foi uma das pistas apresentadas pela eurodeputada socialista Ana Gomes para justificar o pedido para reabertura do caso dos submarinos.

"Na escuta 18, Paulo Portas revela a Abel Pinheiro que em viagem à Alemanha, em março de 2005, aproveitou para ir tratar de 'aquilo' ao 'Canalis' - o que pode muito bem tratar-se de má transcrição e significar uma visita a Michel Canals, um dos sócios fundadores da Akoya Investments, especialista em organizar a fuga ao fisco e o branqueamento de capitais, elemento que não foi Paulo Portas oportunamente confrontado pelo Ministério Público", escreve Ana Gomes no pedido de reabertura. Seria a ponta que ligaria as suspeitas sobre Portas no negócio dos submarinos à investigação 'Monte Branco'.

Como disse? Há, de facto, erros de transcrição. O Expresso ouviu o telefonema entre Portas e Pinheiro e esses erros são evidentes, até porque tudo o que é dito pelos dois intervenientes é percetível. Só que o erro não é o que Ana Gomes supõe: Portas não fala em "Canalis" nem em "Canals", mas em "canal" - substantivo comum, masculino, singular. E onde os investigadores ouviram "aquilo", ouve-se "a Kiel". A frase do então ministro da Defesa é: "Ainda fui a Kiel". Pinheiro responde-lhe: "Fizeste muito bem. Ao canal?" "Ao canal, exatamente", confirma Portas. "O famoso canal, foi promessa de Bismark", conclui Abel Pinheiro (ninguém diz a palavra 'monte'). Lida assim, a conversa já faz sentido, sobretudo sabendo história.

O Canal de Kiel, no Norte de Alemanha, é um canal artificial que foi mandado construir por Otto von Bismark, ligando a cidade de Kiel, no Mar Báltico, ao Mar do Norte, junto à foz do rio Elba. Um feito de engenharia (99 quilómetros de comprimento por 100 metros de largura) mas também geopolítico e militar (permitia à Marinha Imperial chegar ao Mar do Norte sem passar por águas da Noruega e da Dinamarca, o que foi decisivo na I Guerra Mundial). Mas nesse dia, Portas não foi em peregrinação testemunhar a obra do chanceler Bismark - foi testemunhar o início da construção do primeiro submarino comprado aos alemães. Em Kiel, onde ficam os estaleiros da HDW. Na edição de abril de 2005, a "Revista da Armada" dava a notícia desse "importante evento" no qual também esteve o chefe do Estado-Maior da Armada. A delegação saiu de Lisboa a 6 e regressou a 7, quando Portas e Pinheiro são escutados.

Como leu? Mas este não é o único lapso do processo que alimentou as suspeitas de Ana Gomes. A eurodeputada tem referido também uma carta rogatória do Ministério Público enviada para as Bahamas, para saber quem eram os beneficiários de cerca de 19 milhões de euros colocados num offshore, Felltree Fund. Do que se soube entretanto na comissão de inquérito ao caso BES/GES, essa terá sido uma das operações de circulação do dinheiro feita por três administradores e um consultor da Escom, que receberam cada um cerca de 5 milhões de euros de comissões pelo negócio dos submarinos.

De acordo com o testemunho dos próprios, o essencial do dinheiro de comissões (quase 30 milhões de euros) foi dividido pelas quatro pessoas ligadas à Escom e pelos cinco ramos do Conselho Superior do grupo Espírito Santo, tendo o remanescente sido gasto num intrincado labirinto de offshores para esconder o rasto do dinheiro.

No despacho de arquivamento do caso dos submarinos é referida uma informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), segundo a qual as autoridades das Bahamas teriam dado informações às autoridades judiciárias portuguesas sobre esse Felltree Fund. Porém, conforme se lê no despacho, "tais elementos não foram encontrados". Daqui Ana Gomes concluiu que teriam desaparecido do MNE quando Portas era ministro.

Em causa está um ofício (referência 13732/2013) enviado a 24-6-13 pelo Departamento de Assuntos Jurídicos da Secretaria-Geral do MNE à procuradora-geral da República. O documento, sabe o Expresso, informa que a carta rogatória do Ministério Público foi entregue pela embaixada de Portugal em Washington à embaixada das Bahamas em Washington a 5 de junho de 2013. Mais: a embaixada das Bahamas informou que, no mesmo dia, essa documentação foi enviada às autoridades judiciárias "do seu país". Ou seja, das Bahamas, e não de Portugal.

Aliás, nem seria plausível que, no mesmo dia em que recebe um pedido desta natureza, as autoridades do país visado enviassem, de imediato, a informação solicitada (para mais, sendo um paraíso fiscal). Ou seja, o documento referido por Ana Gomes não diz que as Bahamas enviaram informação para Portugal - diz que a embaixada das Bahamas reencaminhou a carta rogatória para o "seu país". De resto, ao que o Expresso apurou, o pedido português nunca terá tido qualquer resposta das Bahamas.