Política

A balada de Nan Goldin

Numa crua etnografia visual, o desejo libertário e os espaços de liberdade conviviam já, nesse período pós-Stonewall, com a sida, o medo, a doença, os parentescos de cuidados retratados nos pequenos gestos e fundamentais presenças, em comunidades de afinidade afetiva

Tinha 18 anos e fui ver aquela exposição. Foi perturbador e comovente. As fotografias de Nan Goldin não me saíram mais da cabeça. Pelo tipo de atenção com que os seus amigos e amigas eram fotografados, fez-me reparar de outro modo no ambiente queer e naquilo que testemunhava. Mais que todas, a série que compõe a “Ballad of Sexual Dependency" foi para mim uma experiência nova e inesperada num museu no Porto. O amor e o prazer, retratados tão diferentemente das representações convencionais, a exaltação da beleza das drag queens, as drogas, a sexualidade, a dor, a violência, os cuidados, a morte. Não havia, naquelas fotografias, qualquer traço de estigma. Reconhecimento, sim, e verdadeira intensidade.

Naquelas salas, olhando as paredes, encontrávamo-nos diante da sua “tribo”, das suas “pessoas”, da sua intimidade e de um certo modo de vida e de amizade. Diante dos arranjos múltiplos de erotismo e desejo, de nudez, dos bastidores e do quotidiano da vivência gay, das queens, de pessoas transgénero, do bas-fond da cultura LGBTQ de Nova Iorque. Numa crua etnografia visual, o desejo libertário e os espaços de liberdade conviviam já, nesse período pós-Stonewall, com a sida, o medo, a doença, os parentescos de cuidados retratados nos pequenos gestos e fundamentais presenças, em comunidades de afinidade afetiva. Devíamos olhar muitas vezes para as imagens do impacto dessa pandemia, do estigma que a SIDA transportou, mas também para as redes de interajuda cujos laços não assentavam nas famílias biológicas (quantas vezes o primeiro lugar de rejeição), mas no amor e na interdependência, em vínculos escolhidos e construídos à margem das idealizações conservadoras sobre quem são “os nossos”, sobre quem compõe o que chamamos de “família”, sobre a própria forma da vida em comum, sobre quem está lá para nós, ao nosso lado, quando estamos a morrer.

Isto foi em 2002, em Serralves. Ainda na saudosa direção artística de João Fernandes, num tempo em que o puritanismo, mesmo que dissimulado, não tinha ali espaço e em que era inimaginável censurar fotografias (como veio a acontecer depois, no mesmo Museu de Serralves, com a exposição de Mapplethorpe). Vinha ainda longe a supressão das entradas gratuitas no Museu em todos os domingos. Parecia existir um entusiasmo recíproco entre o museu e a cidade (e os seus habitantes e as escolas e os seus estudantes…). Um outro tempo, portanto.

Nan Goldin está aí outra vez, no Porto e em Lisboa. É mais que justa a homenagem que, por iniciativa de João Sousa Cardoso, é prestada por estes dias à fotógrafa que queria ser cineasta. Por ela, claro, mas porque esta estadia é acompanhada de uma programação que permite ouvi-la sobre fotografia, sobre aqueles anos, sobre os amigos que perdeu para a sida e com quem não pôde envelhecer mas que as fotografias mantêm vivos, sobre o ativismo recente contra a milionária família Sackler e os efeitos do OxyContin (um opiáceo altamente viciante), pela redução de danos e pelo acesso a tratamentos médicos, pela liberdade.

Que sorte temos em sermos contemporâneos de Nan Goldin. Que sorte a dos que puderem ver, esta semana, os seus slideshows. Que bom que haja quem amplie, pelo seu olhar, o nosso – e nos dê a ver a impetuosidade da vida, dos amores, dos vícios, dos sofrimentos.

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