A estreia de Joacine no Parlamento. “Foi eleita e já gaguejava, não me parece que tenha havido problemas em passar a mensagem”
PEDRO NUNES
Num tweet publicado após a sua primeira intervenção no Parlamento, Joacine Moreira publicou nas redes sociais um resumo da sua intervenção desta quarta-feira no Parlamento “para facilitar algumas vidas” e em resposta “ao ódio” de que tem sido alvo na Internet, explica ao Expresso o assessor da deputada do Livre, Rafael Martins
Joacine Moreira discursou pela primeira-vez no Parlamento. Esta quarta-feira, questionou o primeiro-ministro sobre temas como a imigração, desigualdades e alterações climáticas. Pouco depois, a deputada do Livre publicou nas redes sociais aquilo a que se referiu como “um resumo da intervenção para facilitar algumas vidas”. Ter-se-á tratado de uma estratégia para facilitar a comunicação e evitar que sejam apontadas críticas relacionadas com a ineficácia da mensagem política, tendo em conta o problema de gaguez da deputada?
Quer o assessor da deputada quer a direção do partido negam que se trate de uma estratégia para combater eventuais dificuldades em passar a mensagem. E não vai ser prática regular partilhar por escrito aquilo que a deputada diga. “Para nós é completamente indiferente que a Joacine seja gaga. Não nos preocupamos em criar uma estratégia para agilizar ou capitalizar o discurso. Foi eleita pelos portugueses e já gaguejava, não me parece que tenha havido problemas em passar a mensagem”, diz Rafael Martins, assessor da deputada.
Então por que razão partilhar nas redes sociais, pouco depois da intervenção no Parlamento, o que Joacine disse? “Foi uma resposta ao ódio online. Sobretudo no Twitter, as reações têm sido particularmente mordazes. Foi uma resposta a isso”, assegura Rafael Martins, salientando o poder das redes sociais e da linguagem dos memes na comunicação hoje em dia.
“Faríamos o mesmo com qualquer outro deputado ou deputada eleita pelo Livre. Não há qualquer relação com a gaguez da Joacine”, acrescenta Paulo Muacho, da direção política do partido, explicando que criar conteúdos com vídeo e fotografia e excertos das intervenções da deputada na Assembleia da República ou de discursos seus feitos noutros contextos é algo que o partido vai continuar a fazer, porque “já se percebeu que se trata de uma estratégia de comunicação que resulta muito bem nas redes sociais”.
Para Paulo Muacho, a única questão que se levanta com as intervenções de Joacine Moreira no Parlamento tem que ver com a questão do tempo, sendo certo que “demorarão um pouco mais”. A eficácia ou não da comunicação e da defesa de ideias e propostas não é algo que preocupe o dirigente político, uma vez que, “na prática, a mensagem passa perfeitamente”. “É uma questão de adaptação, de um esforço que todos devemos fazer. Não vemos isto como um problema.” Além disso, acrescenta Paulo Muacho, “o trabalho parlamentar vai muito além das intervenções no Parlamento”. Daí que também não estejam planeadas estratégias específicas no sentido de contornar o problema de gaguez da deputada.
O Expresso contactou Joacine Moreira, que remeteu para as respostas dadas pelo seu assessor e pela direção do partido.
Joacine e Rafael Martins na tomada de posse como deputada
TIAGO MIRANDA
Questionado também sobre futuras interpelações ao Governo durante um debate parlamentar, Rafael Martins desvaloriza e assegura que a gaguez não vai ser - não pode ser - um problema. “Se o Governo não está preparado para dialogar com uma gaga, então não está preparado para governar.”
Na última sexta-feira, Joacine Moreira foi a única deputada eleita dos novos partidos com assento parlamentar que não esteve presente no debate do "Expresso da Meia-Noite". O convite foi feito mas recusado. Um vez mais, diz o assessor, o objetivo não foi evitar o debate com os restantes convidados ou falar publicamente. “Apresentar-se-á sempre nos debates para os quais for convidada e sempre que puder estar presente”, diz Rafael Martins, lembrando que Joacine é mãe solteira de uma menina de três anos e que, por isso mesmo, é necessário gerir a “agenda maternal e a agenda parlamentar”. “Nunca deixarei a Joacine trabalhar mais de 8 horas. Naquela sexta-feira, a Joacine começou a trabalhar às 7h00, tomou posse às 9h00, queriam que estivesse no debate às 21h00. Era completamente irracional. A sociedade e os órgãos de comunicação social esperam ter acesso 24 horas por dia aos políticos e é inadmissível”, defende.
Falar é assim tão importante?
Que o trabalho parlamentar vai além das intervenções é algo que também o politólogo António Costa Pinto salienta, para justificar a sua posição de que a gaguez de deputada parlamentar do Livre não será, na sua opinião, prejudicial para o partido, “até pelo contrário, tendo em conta o seu eleitorado”. “A dimensão discursiva no Parlamento português representa cerca de 10 por cento da atividade de um deputado, os restantes 90 por cento têm que ver com comissões parlamentares ou comissões ad hoc ou de inquérito”, afirma o politólogo ao Expresso, reforçando: “Não se pode dizer que essa dimensão seja um elemento muito importante da atividade parlamentar ou com impacto sequer”.
E ainda menos no caso de Joacine Moreira e do Livre, cuja “notoriedade mediática” e “conteúdo das propostas e mensagem política”, respetivamente, “sobrepõem-se a tudo o resto”. “O problema da gaguez, que é um problema técnico, acaba até por dar mais destaque ao partido e à sua mensagem e propostas específicas”, diz António Costa Pinto, acrescentando que os “debates parlamentares têm pouca notoriedade na sociedade portuguesa”, que é como quem diz — são pouco vistos e, quando vistos, têm pouco eco. “Os plenários têm pouco destaque e, quando têm, concentram-se fundamentalmente nos grandes partidos e no primeiro-ministro e nos ministros. O trabalho de Joacine será feito sobretudo nos bastidores do Parlamento e em termos de propostas do partido”.
Joacine na primeira sessão parlamentar
Nuno Botelho
Se a eficácia da mensagem que se quer passar aos eleitores não é questão para suscitar grandes preocupações, o mesmo não se poderá dizer em relação aos restantes deputados e ao Governo, admite o politólogo (“claro que a gaguez da deputada é um assunto com uma grande visibilidade mediática”), reforçando, contudo, que “isso não terá qualquer importância para o trabalho parlamentar. “O mais importante nos debates quinzenais e plenários é precisamente aquilo que passa para a opinião pública, porque todas as decisões ou quase todas já estão tomadas”.
Para Carla Baptista, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), não há dúvidas de que existe uma dificuldade em passar a mensagem. “Ficou evidente no primeiro discurso, até porque foi uma interpelação ao primeiro-ministro, que aquilo que consegue dizer é pouco, é escasso. É preciso uma resiliência emocional muito grande para aguentar aquilo, porque a verdade é que é incómodo”, diz. “É uma deputada e está sujeita a uma avaliação de desempenho que pode ser feita por qualquer um. Seria hipócrita dizer que alguém com uma gaguez profunda não vai ter o seu trabalho prejudicado, até porque a verbalização é um lado muito essencial do trabalho político. A Assembleia é onde se vai discutir e debater ideias. É um trabalho também performativo e muito verbal.”
No entanto, considera ainda a professora, de forma alguma a legitimidade de Joacine Moreira pode ser posta em causa tal como foi feito “durante a campanha eleitoral”. “A gaguez foi politizada. Mas os eleitores decidiram que apesar dessa dificuldade notória, valia a pena acreditar naquela pessoa. Pessoalmente, acho que foi muito corajosa a propor-se a um lugar cujas intervenções são sempre televisionadas e em que há uma exposição pública enorme.”
Em cerca de cinco minutos - estão atribuídos 2 minutos e 30 segundos aos deputados únicos nesta primeira intervenção, mas foi assegurado em conferência de líderes que haveria tolerância da Mesa devido à gaguez severa da deputada -, Joacine Moreira defendeu “o mesmo respeito e a mesma importância” aos imigrantes e minorias étnicas do que aqueles que são dados aos emigrantes e lusodescendentes, acrescentando ainda que “não há nenhum combate às desigualdades com ordenados mínimos absolutamente miseráveis”. Em terceiro lugar, questionou ainda o Executivo sobre o orçamento previsto para o combate às alterações climáticas.
Já durante a tarde, na sua segunda intervenção, a deputada do Livre apontou a igualdade como “objetivo número um”, manifestando a disponibilidade do partido em apoiar e incentivar todas as iniciativas nesse sentido.